Pular para o conteúdo principal

LFG: Mensalão e o Risco de Anulação!!

Mensalão: sério risco de anulação
LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)*

O julgamento do mensalão começou com duas pedras (jurídicas) no seu caminho: impedimento ou suspeição do ministro Dias Toffoli e separação do julgamento. No plano estritamente jurídico e longe de qualquer “partidarização” do assunto, restam, ainda, dois outros grandes questionamentos técnicos: o ministro relator – no caso, Joaquim Barbosa-, depois de presidir a fase de investigação, por força do Regimento Interno do STF (art. 230), pode ser ao mesmo tempo investigador dos fatos e juiz do processo? O ato de recebimento da denúncia, por ele, foi uma decisão puramente formal ou um veredito “de fundo” (de mérito)? Que diz a jurisprudência da Corte Interamericana sobre tudo isso? 

Quanto à suspeição do ministro Dias Toffoli, o principal interessado nessa alegação seria o Procurador-Geral da República, que nada requereu. Logo, o tema ficou reservado à esfera íntima (ética) do próprio ministro. No que diz respeito à separação do julgamento, pela primeira vez de forma exaustiva o STF enfrentou a questão do julgamento conjunto de pessoas que gozam do antirrepublicano privilégio burguês do foro especial com outros sem este direito. 

O pano de fundo da separação ou não do processo diz respeito, como levantou o ex-ministro Thomaz Bastos, ao direito de todos os réus (pelo menos dos que não têm foro especial) ao duplo grau de jurisdição, que é o direito a um duplo julgamento fático e jurídico, por juízes distintos, em caso de condenação criminal. Trata-se de direito expressamente previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, 2, “h”). Por 9 votos a 2 a tese foi corretamente refutada. 

Quem bem enfocou a questão foi o ministro Celso de Mello, que se valeu da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que excepciona o direito ao duplo grau no caso de competência originária da Corte Máxima do País. Em eventual reclamação para a citada Corte, portanto, a chance de sucesso da defesa, neste ponto, é praticamente nula. A mesma coisa não se pode dizer em relação à garantia do julgamento por juiz imparcial. 

Atraso cultural, autoritarismo tradicional, democracia incipiente e desrespeito ao direito e à jurisprudência internacionais explicariam a regra do regimento interno do STF (art. 230) que determina ser relator do processo judicial o mesmo ministro que investiga o crime na fase preliminar. Todos os atos investigatórios ou cautelares, posteriores ao recebimento do inquérito – requerimento de prisão, busca e apreensão, quebra de sigilo telefônico, bancário, fiscal e telemático, interceptação telefônica, além de outras medidas invasivas, são processados e apreciados, em autos apartados e sob sigilo – sob sigilo, sublinhe-se -, pelo Relator. 

É evidente que esse vínculo psicológico do Relator com as diligências investigativas o aproxima da posição do inquisidor, afetando profundamente o que existe de mais sagrado na figura do juiz, que é a imparcialidade. O ministro Joaquim Barbosa conduziu toda essa fase preliminar e foi se envolvendo paulatina e psicologicamente com ela, o que seguramente explica o seu enfático e midiático voto pelo recebimento da denúncia. Nessa altura dos acontecimentos, certamente não vai se afastar do processo, mesmo porque, se for coerente com tudo que ele já escreveu e falou publicamente, será o mais implacável algoz de todos ou de muitos dos réus. 

O grave problema técnico e jurídico do autoritário Regimento Interno é que quem investiga um crime não pode ao mesmo tempo ser juiz do processo. Quem diz isso? A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, especialmente no caso Las Palmeras contra Colômbia, parágrafo 49. Viola a garantia do juiz imparcial o magistrado que cumpre o duplo papel de “parte” (investigador) e de juiz. Com base nesse argumento, a chance de uma eventual anulação de toda condenação é muito grande. A despótica determinação regimental, secundada pela jurisprudência do próprio STF, está ultrapassada e contraria frontalmente o direito internacional, que ainda é muito negligenciado pela vivência jurídica nacional. 

De outro lado, há defensor afirmando que o ministro Joaquim Barbosa, no momento em que recebeu a denúncia (contra todos os 38 réus), precisamente em razão da sua vinculação psicológica com a fase inquisitorial, não proferira uma decisão puramente formal, como deveria. Acabou praticamente julgando o mérito do caso. E quem assim procede não pode, depois, ser o juiz do processo (Caso Herrera Ulloa contra Costa Rica, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos). A novela do mensalão, como se vê, ainda vai se desenrolar por muitos anos mais, porque ela tende a chegar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 

*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Codiretor do Instituto Avante Brasil e do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me nas redes sociais: www.professorlfg.com.br

Fonte: Instituto Avante Brasil

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

STJ e o reconhecimento do tráfico privilegiado

Sem constatar adequada motivação para o afastamento do tráfico privilegiado — causa de diminuição de pena voltada àqueles que não se dedicam a atividade ilícita —, o ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça, concedeu de ofício ordem de Habeas Corpus para reconhecer o direito de um condenado à minorante da sua pena. O magistrado determinou que o juízo de primeiro grau refaça a dosimetria da pena de acordo com tais premissas, bem como analise o regime inicial mais adequado à nova punição e a possibilidade de conversão da pena em restritiva de direitos. O homem foi condenado a sete anos e seis meses de prisão em regime fechado, além de 750 dias-multa, pela prática de tráfico de drogas. A pena-base foi aumentada levando-se em conta a quantidade de droga apreendida (157 quilos de maconha), o que levou à presunção de dedicação a atividades criminosas. O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a decisão, que transitou em julgado. O ministro relator lembr...

Lugar do crime: teoria da ubiquidade (CP) ou do resultado (CPP)?

Eudes Quintino de Oliveira Junior Muitas vezes, ao se analisar os dispositivos contidos em nossa legislação (sejam de direto material ou processual), verifica-se que há regras aparentemente distintas e contraditórias, o que fatalmente acarreta uma série de dúvidas aos operadores do Direito, sem falar ainda dos estudantes do bacharelado e dos concursos públicos. Com efeito, dispõe o artigo 6º, do CP, que: considera-se praticado o crime no momento da ação, ou da omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado. Já o artigo 70, do CPP, diz que a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou , no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução. Pois bem, está caracterizada a aparente antinomia na área penal, em tema de lugar do crime. Os ventos são indicadores de furacão nos mares do sul. O CP diz que deve se considerar, como local onde praticada a infração penal, o lugar onde t...

Novo padrão probatório para testemunho policial em condenações criminais

Há tempos consolidou-se em nossos tribunais o entendimento pela validade dos depoimentos prestados por agentes estatais, havendo inclusive julgados afirmando que mereceriam maior crédito porque prestados por servidores, no exercício de suas funções. Entretanto, recentes decisões judiciais têm causado alteração no padrão de provas anteriormente exigido apontando no sentido de que as palavras dos policiais, como toda prova testemunhal, são passíveis de falhas, o que  recomenda (ou exige) a adoção, por parte do Estado, de cautelas maiores que a de simplesmente carrear à defesa o ônus de comprovar a parcialidade do agente ou de equívoco fático em seu testemunho. Não se pretende aqui colocar em xeque indistintamente a idoneidade dos agentes estatais, mas apenas apontar que a falibilidade de nossa memória e, portanto, da prova testemunhal em si, recomenda, como padrão probatório mínimo a fundamentar condenações criminais, a exigência de elementos outros, antes impossíveis devido ao "est...