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LFG: Problema carcerário é político e não jurídico!

Por Luiz Flávio Gomes

O retrato do sistema prisional brasileiro, divulgado pelo CNJ, que é fruto do trabalho realizado pelo Mutirão Carcerário de janeiro de 2010 a janeiro de 2011, é desolador e preocupante. Em alguns estados (Alagoas, por exemplo), a prisão cautelar passa dos 60%, o processo é extremamente moroso, os cárceres são degradantes etc. 

Quem pode resolver esse grave problema nacional? Diante de tudo que (historicamente) já vimos no nosso país, não será o Poder Jurídico, que não só não está apto a resolvê-lo, como faz parte do problema, na medida em que, cada vez mais, aumenta a sua conivência com o desastrado, vexatório e desumano estágio em que chegamos. Na verdade, não há como depositar confiança em qualquer tipo de equacionamento endógeno. Eventual melhora substancial só pode ocorrer quando se colocar com precisão o dedo na ferida: o problema penitenciário não passa da ponta de um “iceberg”, embora bastante expressiva, do Estado de Exceção implantado (e nutrido diariamente) pelo próprio Poder Jurídico (juízes, membros do Ministério Público, policiais, agentes penitenciários etc.), assim como pelo sistema socioeconômico que nos governa, hoje (desde os anos 80) com conotação nitidamente ultraliberal, que significa neoliberalismo na economia e conservadorismo (hiperpunitivismo) no âmbito penal, com amplo apoio popular (populismo). Menos Estado na economia e mais Estado no campo penal. O Estado Social se ausenta para entronizar o absolutismo do Estado penal e penitenciário. 

O mais grave em relação aos agentes públicos do sistema penal diz respeito à falta de legitimidade das suas atividades (assim como a falta de ética). A legitimidade dos órgãos públicos está atrelada à tutela dos direitos fundamentais contemplados no ordenamento jurídico. Sem “exercício comprometido” (com os direitos humanos dos condenados e das vítimas) não há que se falar em legitimidade. Esse comprometimento é que não se vê, em geral, no que diz respeito à questão penitenciária, nos agentes do Poder Jurídico, especialmente nos juízes, que se escusam de mil maneiras, atribuindo a responsabilidade (pelo todo) a outras pessoas. 

O sistema penitenciário faz parte do sistema penal e, por este último, como um todo, ninguém se diz responsável. A desarticulação entre os integrantes do sistema penal é mais do que evidente, o que nos permite colocar em questão até mesmo a existência de um “sistema”. 

A polícia prende e entrega o suspeito ao juiz; o juiz, depois da tramitação do processo, o condena (quando há provas suficientes). Ocorre que esse juiz que condena não é o mesmo que executa a pena. O juiz que cuida da execução joga toda responsabilidade sobre os ombros do Poder Executivo, das leis mal feitas etc. Ou seja: ninguém se entende e ninguém assume responsabilidade pelo todo. Daí o questionamento: será que podemos realmente falar em “sistema” penal? Quem passa por todos os órgãos, evidentemente, é o preso, que é considerado e tratado como uma coisa, um objeto. Esse chamado “sistema penal” funciona como uma máquina que massacra os seus direitos assim como os das vítimas, que são totalmente esquecidas, não conseguindo, em regra, nenhum centavo de indenização pelo delito praticado contra elas. 

Os juízes, sobretudo, sabem perfeitamente o que estão fazendo, que estão mandando gente para lugares tidos como depósitos de coisas, de mercadorias. E tudo se passa como se o Estado de Direito não existisse. O Brasil já firmou praticamente todos os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, mas tudo parece que não passa de cartas de intenções (ou declarações da esperança). É como se não tivessem valor jurídico no interior do nosso país. Várias vezes os órgãos do sistema interamericano (Comissão e Corte) já condenaram o Brasil em razão dos maus-tratos aos presos. Mas nada muda significativamente (ou sistematicamente). Como se vê, é difícil imaginar que possa, nesse contexto, nascer alguma solução para o grave problema penitenciário, sempre enfocado (equivocadamente) como uma questão puramente jurídica. Cuida-se de uma séria questão política (de Estado, de civilização dos costumes, de evolução da espécie humana). A solução, como se nota, é exógena (tem que vir de fora do sistema jurídico).

Fonte: Conjur

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