Pular para o conteúdo principal

Carteiraço ou Carteirada!

Diego Pereira Machado
Procurador Federal, Professor, Mestre e 
Doutorando em Direitodiegopm_brazil@yahoo.com

Não raras vezes nos deparamos com operações realizadas nas ruas de nossas cidades com o fim de fiscalizar a regularidade dos documentos dos veículos, habilitação dos condutores dentre outros desideratos. Tais atribuições são desempenhadas pelos guardas municipais de trânsito, pelas polícias civil e militar, polícia comunitária e por inúmeras outras instituições responsáveis pela manutenção da tranquilidade no trânsito, bem como pela segurança geral da população.

Não raras vezes, também, deparamo-nos com um preocupante comportamento, já enraizado e incutido em nossa cultura, o malfadado, corriqueiro e famoso “você sabe com quem está falando?”, mais conhecido como carteiraço ou carteirada.

Essa forma de comportamento é uma das características mais marcantes da estrutura social hierarquizada brasileira, onde alguns que possuem carteira de delegado, procurador, promotor, juiz, desembargador, governador, deputado, prefeito, vereador, médico, advogado, dentista, secretário, diretor de universidade, elitistas que pertencem a famílias tradicionais, servidores públicos em geral e muitos outros (a lista não tem fim!), tentam impor sua surreal supremacia sobre os cidadãos comuns.

Não gera mais tanto espanto os infindáveis casos de carteirada noticiados pelos mais diversos meios de comunicação. Quem exerce cargo público precisa se conscientizar de que não está acima da lei, não é intocável, mas sim está abaixo dela, deve obediência a ela.

É de se ressaltar que os que se intitulam seres acima da lei e que seriam os únicos protagonistas dos carteiraços não estão mais sozinhos. Uma nova forma de abuso surge: são os carteiraços de mulheres, filhos, sobrinhos, vizinhos, amigos e até amantes de pessoas que se julgam importantes e que de tão prepotentes acreditam que sua posição pode servir de manto protetor para abusos. Acreditam que estão em uma posição privilegiada a ponto de não precisarem cumprir os ditames básicos para uma convivência pacífica em sociedade.

Não resta outra conclusão a não ser a de afirmar, com extrema convicção, que tais atitudes estão num patamar de primitivismo e de arcaísmo inaceitável em pleno século 21. Uma nação prestes a sediar copa do mundo e jogos olímpicos necessita urgentemente de um chá de etiqueta, para aprender algo muito difícil: o respeito.

Tal forma de comportamento (arrogante!) nos remete ao que aconteceu com uma guarda de trânsito, no Rio de Janeiro, conforme matéria publicada pelo jornal “O Globo”, em 11 de julho de 2002. Ao fazer cumprir a lei, a guarda municipal acabou indo para a delegacia e autuada depois de multar o carro do filho de um renomado jurista – um Golf – e mais sete veículos estacionados em local proibido (Rua Lacerda Coutinho, em Copacabana).

Além de o “você sabe com está falando?” poder tipificar desacato (art. 331 do Código Penal), pode também configurar abuso de autoridade (Lei 4898/65).

Precisamos sepultar de vez o uso do “você sabe com quem está falando?”. Quando eu me deparei pela primeira vez com essa pergunta de natureza imperativa, respondi imediatamente “eu estou falando com ninguém!”, quase saí preso da audiência, mas confesso que de alma lavada! Não recomendo assim responder, mas sugiro que quando se deparar com um carteiraço acione os órgãos correcionais, não seja mais uma vítima.

Além de crescimento econômico e social, devemos saber que tudo passa por uma mudança interna, pessoal, pequenas atitudes podem trazer grandes mudanças.

OBS.: Artigo de opinião publicado Jornais de vários Estados, como RS e MT.

Fonte: Atualidades do Direito

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

STJ e o reconhecimento do tráfico privilegiado

Sem constatar adequada motivação para o afastamento do tráfico privilegiado — causa de diminuição de pena voltada àqueles que não se dedicam a atividade ilícita —, o ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça, concedeu de ofício ordem de Habeas Corpus para reconhecer o direito de um condenado à minorante da sua pena. O magistrado determinou que o juízo de primeiro grau refaça a dosimetria da pena de acordo com tais premissas, bem como analise o regime inicial mais adequado à nova punição e a possibilidade de conversão da pena em restritiva de direitos. O homem foi condenado a sete anos e seis meses de prisão em regime fechado, além de 750 dias-multa, pela prática de tráfico de drogas. A pena-base foi aumentada levando-se em conta a quantidade de droga apreendida (157 quilos de maconha), o que levou à presunção de dedicação a atividades criminosas. O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a decisão, que transitou em julgado. O ministro relator lembr...

Lugar do crime: teoria da ubiquidade (CP) ou do resultado (CPP)?

Eudes Quintino de Oliveira Junior Muitas vezes, ao se analisar os dispositivos contidos em nossa legislação (sejam de direto material ou processual), verifica-se que há regras aparentemente distintas e contraditórias, o que fatalmente acarreta uma série de dúvidas aos operadores do Direito, sem falar ainda dos estudantes do bacharelado e dos concursos públicos. Com efeito, dispõe o artigo 6º, do CP, que: considera-se praticado o crime no momento da ação, ou da omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado. Já o artigo 70, do CPP, diz que a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou , no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução. Pois bem, está caracterizada a aparente antinomia na área penal, em tema de lugar do crime. Os ventos são indicadores de furacão nos mares do sul. O CP diz que deve se considerar, como local onde praticada a infração penal, o lugar onde t...

Novo padrão probatório para testemunho policial em condenações criminais

Há tempos consolidou-se em nossos tribunais o entendimento pela validade dos depoimentos prestados por agentes estatais, havendo inclusive julgados afirmando que mereceriam maior crédito porque prestados por servidores, no exercício de suas funções. Entretanto, recentes decisões judiciais têm causado alteração no padrão de provas anteriormente exigido apontando no sentido de que as palavras dos policiais, como toda prova testemunhal, são passíveis de falhas, o que  recomenda (ou exige) a adoção, por parte do Estado, de cautelas maiores que a de simplesmente carrear à defesa o ônus de comprovar a parcialidade do agente ou de equívoco fático em seu testemunho. Não se pretende aqui colocar em xeque indistintamente a idoneidade dos agentes estatais, mas apenas apontar que a falibilidade de nossa memória e, portanto, da prova testemunhal em si, recomenda, como padrão probatório mínimo a fundamentar condenações criminais, a exigência de elementos outros, antes impossíveis devido ao "est...