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Com agravamento da crise econômica, casos de furto de alimento se multiplicam

O furto de alimentos para saciar a fome é uma prática que não possui estatísticas dentro do Poder Judiciário brasileiro. Contudo, advogados ouvidos pela ConJur afirmam que a ocorrência desse crime vem aumentando nos últimos anos, principalmente no período pós-epidemia de Covid-19, quando há um aprofundamento da situação de empobrecimento da população.

Apesar de haver uma decisão do Supremo Tribunal Federal que considera que o furto de alimentos para satisfazer a fome não é crime, são recorrentes as denúncias desse tipo de delito por parte de integrantes do Ministério Público, depois transformadas em condenações nas primeiras instâncias. Não é obrigatório seguir o precedente, mas ele serve de orientação aos magistrados, que deveriam desconsiderar casos em que o valor do furto é irrisório, não provocando prejuízo ao estabelecimento onde ocorreu o delito.

Em 2004, o julgamento de um Habeas Corpus no STF (HC 84.412) estabeleceu requisitos para o princípio da insignificância, como a ausência de periculosidade da ação, a mínima ofensividade do agente executor do furto, a inexpressividade da lesão e o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento. Com relatoria do ministro Celso de Mello, a decisão foi unânime na 2ª Turma, que invalidou a condenação do réu e extinguiu a ação penal.

Tal decisão serviu de base para as futuras sentenças da corte sobre esse tema, mas não foi aplicada em outras instâncias, o que demonstra que há conflito de entendimentos no Judiciário sobre o furto de alimentos e o princípio da insignificância.

Esse desentendimento sobrecarrega as instâncias superiores. Uma pesquisa de jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça mostra que, nesta quinta-feira (18/8), a corte registrava 20 acórdãos que concederam Habeas Corpus a acusados de furto famélico em vários estados brasileiros nos últimos três anos e 544 decisões monocráticas. Os delitos foram a subtração de, por exemplo, dois quilos de carne bovina em um supermercado, lata de achocolatado em outro, ou de um pote de margarina e até mesmo de banha de porco para cozinhar.

Quando a pesquisa no STJ aborda o princípio da insignificância, os registros mostram 7.324 casos de acórdãos e 57.672 decisões monocráticas para o tema. Em uma pesquisa direta sobre furto de alimentos, a corte teve 24 acórdãos e 908 decisões monocráticas sobre esse tipo de delito.

Já a pesquisa de jurisprudência no STF revela que na última década houve pelo menos sete acórdãos e 20 decisões monocráticas para o furto famélico; quatro acórdãos e 48 decisões monocráticas para o furto de alimentos; e 911 acórdãos e 3.773 decisões monocráticas sobre princípio da insignificância.

Gravidade
Nos dias atuais, a gravidade do contexto econômico e social brasileiro começa a ganhar destaque e está associada ao crescimento de furtos de alimentos e famélicos, incluídos no princípio da insignificância.

Contudo, de acordo com Glauco Mazetto, defensor público e assessor criminal infracional da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o furto de alimentos faz contraste na sociedade brasileira. "A subtração de alimentos pode estar associada diretamente com a fome e indiretamente com a desigualdade social e a pobreza", explica Mazetto, destacando que ainda é necessário obter maior base de dados para chegar à conclusão de que esse tipo de delito aumentou em virtude da elevação do nível de pobreza da população.

A nona edição do "Boletim Desigualdade nas Metrópoles", do Observatório das Metrópoles, da PUC do Rio Grande do Sul e da Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina (RedODSAL), mostra que em 2021 a pobreza atingiu 19,8 milhões de brasileiros moradores em regiões metropolitanas. Esse estudo, baseado nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), leva em consideração pessoas com renda mensal per capita de aproximadamente R$ 465.

Trata-se do maior índice registrado desde o início da série histórica, em 2012. A taxa de pobreza passou de 19,3% em 2020 para 23,7% no ano passado, segundo o índice. Estima-se que 3,8 milhões de brasileiros adentraram na faixa de situação de pobreza.

Para o defensor público paulista, a desigualdade social permeia todos esses crimes provocados pela pobreza e pela fome. "(Esse tipo de furto para saciar a fome) Vai continuar a existir de forma recorrente e enquanto a desigualdade for grande", alerta Mazetto. Ele afirma ainda que parte do Judiciário se nega a aplicar o princípio da insignificância para o furto de alimentos e o furto famélico.

"No dia a dia do MP e do Judiciário, o furto de alimentos é recorrente. Está sempre presente e não vai desaparecer. O problema é a desigualdade social. Falta um compromisso por parte dos magistrados, de parte do Judiciário e de parte do Ministério Público". Para Mazzeto, os magistrados querem resolver o problema com punição, da forma mais rápida possível.

Para o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em Políticas Públicas de Direitos Humanos e Segurança Pública pela PUC-SP, membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Movimento Nacional de Direitos Humanos, apesar da falta concreta de estatísticas sobre esse delito, a percepção é de aumento de furtos famélicos em mercados, bares e armazéns.

Alves também chama a atenção para o fato de que a maioria dos promotores e juízes acaba tendo posições criminalizadoras. "Adotam a criminalização da pobreza. Inclusive porque promotores e juízes não sabem o que é passar necessidades e fome", critica ele.

Falta de sensibilidade
O advogado entende que "o posicionamento punitivo de promotores e juízes tem relação com as trajetórias deles. em geral, pessoas de classes média ou alta, que nunca passaram necessidades, principalmente alimentares. Pessoas que foram criadas nas melhores casas e apartamentos, frequentando os melhores colégios, principalmente os particulares".

"O perfil dos operadores do Direito, principalmente de promotores e juízes, é de pessoas que sempre viveram numa 'bolha', com toda proteção familiar, econômica, social e estatal. Aí criminalizam os pobres e não possuem, na maioria dos casos, o mínimo de sensibilidade social e humana. As faculdades de Direito também são responsáveis por formarem profissionais sem visão e conhecimento da realidade social, de direitos humanos e cidadania. Esses temas não fazem parte dos currículos da maioria das faculdades", diz Alves.

A conjunção desses entraves e problemas, segundo o advogado, "gera a não aplicação dos princípios da bagatela, da insignificância e do furto famélico".

Além de não adotarem o princípio da insignificância para esses delitos, ressalta Alves, alguns magistrados e promotores públicos "sequer concedem, em alguns casos, a possibilidade de os acusados responderem os processos em liberdade, principalmente quando são moradores de rua. Nesses casos, muitos promotores e juízes entendem que não possuem 'residência fixa' e resolvem mantê-los presos por furto, o que jamais deveria ocorrer, já que é crime de menor potencial ofensivo, sem violência ou grave ameaça".

Para o ex-secretário de Justiça do Ceará Hélio Leitão, advogado, conselheiro federal da OAB e ex-presidente da OAB-CE, a conduta de quem pratica o chamado furto famélico não é criminosa. "Isso porque o estado de necessidade exclui a ilicitude da conduta, a teor do que prescreve o artigo 23, inciso I, do Código Penal Brasileiro".

Leitão chama a atenção para a conjuntura sócio-econômica atual dos brasileiros, com elevado número de cidadãos e cidadãs em situação de fome, e pede maior sensibilidade de quem tem a incumbência de fazer justiça. "Em um cenário pós-pandêmico, em que pesquisas apontam a existência de nada menos do que 125 milhões de brasileiros em estado de insegurança alimentar, dos quais 33 milhões em situação de fome, há a clara percepção do aumento do número de ocorrências dessa natureza. Esse quadro social tenebroso demanda sempre uma maior sensibilidade dos que têm a seu cargo a realização da justiça para o trato sereno e justo da questão".

A parcela da população com insegurança alimentar é expressiva, também observa Rafael Braude Canterji, sócio do escritório Silveiro Advogados, professor de Direito Penal da PUC-RS e conselheiro federal da OAB. "Assim, temos boa parcela dos cidadãos que em algum momento não tiveram ganhos capazes de prover alimentos a si e/ou a sua família".

Canterji destaca que o problema adquire cada vez mais cunho social, e não jurídico. "Por vezes, a reiteração da conduta leva o Judiciário a não aplicar hipóteses que retiram o caráter criminoso da conduta. Não vejo razão para tanto. Inclusive, a reincidência, considerando o estado social de miserabilidade e as dificuldades de alterá-lo, é tendência".

A solução para o problema, conclui Canterji, não será encontrada nas leis penais. "Não há outro caminho senão a humanização dos poderes, inclusive o Judiciário, para a efetivação do Estado social e democrático de Direito".



Por Eduardo Reina
Fonte: Conjur

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