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Bolívia é condenada pela Corte IDH a mudar tipo penal para casos de violência sexual

A Bolívia terá de adaptar sua legislação para estabelecer que os casos de violência sexual se caracterizam por falta de consentimento, em vez de exigir comprovação de resistência da vítima. Essa foi a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ao considerar o país culpado pela violação dos direitos de Brisa de Angulo Losada, violentada sexualmente aos 16 anos pelo primo, então com 26 anos, na cidade de Cochabamba. 

Segundo o portal Jota, o crime contra Brisa Losada ocorreu em 2001, e ela denunciou o caso em 2002, mas os procedimentos do processo foram considerados insatisfatórios pela Corte IDH.

Brisa, que antes de fazer a denúncia tinha sido diagnosticada com depressão e tentado suicídio, foi atendida por médicos homens e submetida a exames ginecológicos desnecessários. Além disso, diligências judiciais constantemente colocaram em xeque sua versão dos fatos.

A denúncia resultou em procedimentos penais em três instâncias, mas nenhum deles teve desfecho efetivo e o caso acabou prescrevendo em setembro do ano passado. A Corte IDH entendeu que a investigação não foi adequada e a demora para julgar o caso em prazo razoável causou mais sofrimento à vítima.

No centro do processo estava o problema do Código Penal da Bolívia, que separa os crimes de violação, quando há emprego de violência física ou intimidação, com pena maior, e de estupro, quando é cometido contra menores mediante sedução ou engano, com pena mais branda.

A primeira condenação do caso tinha sido por violação, mas a defesa do acusado recorreu e conseguiu a requalificação para estupro. Depois disso, o réu fugiu para a Colômbia e deixou de ir às audiências. Dez anos depois, a Bolívia pediu sua extradição, e ele chegou a ser preso, mas foi liberado logo depois porque o caso prescreveu.

Segundo a Corte IDH, a lei penal boliviana é incompatível com a Convenção Americana por exigir comprovação de ameaça (resistência, gritos) nos casos de violência sexual, em vez de considerar a palavra da vítima.

Além de adaptar o Código Penal, a Bolívia foi condenada pela Corte IDH a: reabrir o processo e investigar o caso, se for possível; apurar eventuais responsabilidades de funcionários pela revitimização; publicar sentença e reconhecer publicamente a responsabilidade internacional; adaptar e criar novos protocolos de atendimento a vítimas; e implantar campanha de conscientização social contra o incesto.

Voto concorrente
O juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch apresentou um voto concorrente, no qual defendeu a necessidade de adequação da tipificação em casos de violência sexual e a necessidade de se criar uma circunstância qualificadora para casos de incesto.

Ele abriu seu voto com uma reflexão sobre a relação entre Direito Penal e direitos humanos. Mudrovitsch recorreu à expressão utilizada por Christine Van der Wyngaert, do Tribunal Penal Internacional, que defendia que o Direito Penal deve servir como "escudo" e "espada" dos direitos humanos.

A reflexão é de que a defesa dos direitos humanos não exclui a aplicação do Direito Penal; mas, sim, que ele deve ser usado como última medida, e após "ponderação cautelosa". "Também significa que a punição de indivíduos responsáveis por violações de direitos humanos não tem um valor meramente simbólico ou metafísico, mas, sim, cumpre uma função de reparar e prevenir futuras violações", afirmou, ainda segundo o Jota.

Em seguida, Mudrovitsch ressaltou que, apesar de ainda muito comum em países latino-americanos, a exigência de "intimidação, violência física ou psicológica" para configuração de crimes sexuais afronta os direitos das vítimas — até porque é difícil comprovar que houve resistência física em crimes desse tipo.

Para ele, a Bolívia deveria abolir o tipo penal de estupro, que consiste na violação de menores mediante sedução ou engano, e tem pena mais branda. O magistrado ainda sugeriu que o país adote uma nomenclatura própria em seu Código Penal para os crimes de incesto, de forma a chamar a atenção da sociedade para tornar essa circunstância, na percepção da população, um agravante, em vez de atenuante da violência.


Fonte: Conjur

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