Pular para o conteúdo principal

Conjur: Coringa, vulnerabilidade na culpa e irracionalidade do Direito Penal em Gotham

Ao assistir ao filme Coringa não pude a todo momento, talvez por falta de criatividade da minha parte ou por limitação epistemológica mesmo, deixar de pensar como o Direito Penal trataria o protagonista, caso o ocorrido seja investigado e processado criminalmente. E, embora o filme tenha tratado de nuances que de longa data parecem óbvias para um estudioso da criminologia, fiquei perplexo. Houve uma maior dimensão em minha epifania sobre o quão pueril e pobre é a análise que se faz ao valorar penalmente determinada conduta.

Não analisarei aqui os aspectos relacionados aos transtornos psíquicos existentes, primeiro porque o filme não trata um diagnóstico preciso sobre quais seriam e, em segundo lugar, porque ainda que assim fosse, não tenho condições técnicas de realizar uma análise psiquiátrica do personagem e verificar se poderia ser considerado imputável.

O histórico trazido pelo filme denota o processo de desenvolvimento em um núcleo familiar totalmente disfuncional. Sofreu abusos por seu padrasto, foi agredido fisicamente desde pequeno o que ensejou danos neurológicos; dependia de um programa do governo para tomar suas medicações psiquiátricas, programa este que foi desativado deixando-o totalmente sem qualquer amparo medicamentoso e que mesmo enquanto funcionava era de utilidade questionável, já que a profissional responsável sequer o ouvia realmente; embora tenha tentado fazer as pessoas rirem com suas piadas e se esforçasse para isso, a única e maior piada era sua mediocridade existencial; em diversas situações cotidianas era agredido fisicamente; traído por pessoas do trabalho que considerava seus amigos. Em suma, não vivia, mas apenas existia, como Macabeia de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector.

Talvez Macabea tivesse um pouco mais de sorte, pois era irrelevante como a grama, passava desapercebida. Já Coringa, não. Sua existência servia para ser ridicularizada e motivo de deboches dos mais diversos tipos. Ele não era visto como alguém capaz de ser um palhaço, mas tratado como um. Não pelas suas piadas, mas por sua condição existencial.

Se Coringa mostra ser a partir de um determinado momento um sujeito absolutamente perturbado, na praxe forense, o mesmo não se pensaria da sociedade em que ele vive (Gotham City). A violência estrutural, presente na vida do protagonista, costuma ser totalmente desprezada em análises processuais ou, quando feita, o é de maneira limitada, pobre, parca, tacanha. Não se está aqui a vitimizar o protagonista (todo maniqueísmo é limitado, pois desconsidera infinitas nuances), mas, por outro lado, crer na absoluta inexistência de fatores exógenos que criam ambientes criminógenos é tão inocente ou ignorante quanto crer que existe meritocracia pura. Ora, se nas atitudes virtuosas há necessariamente fatores exógenos a influenciarem (estrutura familiar, ensino de base de melhor qualidade, dentre outros), naquelas ilícitas, tais não podem ser desprezados.

Ao recordar essas premissas fáticas lembrei-me imediatamente da teoria denominada Culpabilidade por vulnerabilidade do professor Eugenio Raul Zaffaroni. A culpabilidade, segundo tal autor, deve levar em conta a seletividade do sistema e que o sistema punitivo seleciona conforme a vulnerabilidade do sujeito [1] (e Coringa é o típico exemplo de sujeito extremamente vulnerável, neste contexto).

Pessoas com renda inferior, empregos com menor status no meio social, determinados estereótipos, detentoras de menos poder, têm maior vulnerabilidade e menor risco de serem amparadas pelo Estado (o filme mostra isso no momento em que o tratamento é interrompido e ele nada pode fazer) e, portanto, maior probabilidade de serem indivíduos sujeitos ao sistema punitivo preponderante.

Diante desta construção, a culpabilidade é definida como a reprovação do esforço pessoal para alcançar a situação concreta de vulnerabilidade ao poder punitivo.

Em que pese o protagonista tentar obter sucesso (seus devaneios denotam o quanto idealizava sucesso e fama), o destino parece lhe empurrar de maneira bastante intensa para um estado radical de vulnerabilidade.

Verifica-se que não foi necessário nenhum esforço para que se tornasse cada vez mais vulnerável. Pelo contrário, as tentativas para sair de tal estado se mostraram totalmente inúteis.

Em casos como este trazido no filme, no bojo do sistema penal, instalar-se-ia um processo com partes muito bem definidas, autor e vítima, o que só é possível graças a um recorte cartesiano que se faz dos sujeitos participantes do feito e de um recorte fático que, talvez por uma pretensa busca de segurança jurídica é feito, mas que em verdade oculta ou menospreza quase que totalmente diversas nuances relacionadas ao fato.

A pretexto de se obter uma segurança, uma objetividade, chega-se a um formalismo pela forma, um mero "formalismo dadaísta" que, sob o argumento de almejar ser fiel ao faticamente ocorrido, se distancia tanto da riqueza humana que acaba por se tornar uma grande ficção. Ao final, julga-se o feito com fundamento em uma ficção criada por um falso e hipócrita formalismo que despreza quaisquer nuances envolvendo o fato. Ao se buscar a racionalidade na aplicação da lei, o sistema se torna terrivelmente irracional.

Não há um ser em si, que se constrói em um fenômeno puramente endógeno. Há, em verdade, alguém que se desenvolve e se reconstrói a cada momento a partir de fatores também externos. Já se disse: "Yo soy yo y mi circunstancia". Em verdade o maior Coringa de todos é o tecido social, que com sua violência estruturada e estruturante, com a completa ausência de empatia e a "coisificação" das relações humanas, cria, induz ou instiga filhotes, reconstrói e se multiplica e multiplica a violência, ainda que simbólica, para depois eleger alguns bodes expiatórios e causar uma falsa sensação de segurança.

Ao menos me causa alívio e me traz tranquilidade que o contexto e esta análise partem de uma cidade distante, Gotham City, da qual provavelmente estamos distantes, bem distantes...

 

[1] Derecho Penal, Parte General, pág. 654.


Por Rodrigo Pardal
Fonte: Conjur

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

STJ e o reconhecimento do tráfico privilegiado

Sem constatar adequada motivação para o afastamento do tráfico privilegiado — causa de diminuição de pena voltada àqueles que não se dedicam a atividade ilícita —, o ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça, concedeu de ofício ordem de Habeas Corpus para reconhecer o direito de um condenado à minorante da sua pena. O magistrado determinou que o juízo de primeiro grau refaça a dosimetria da pena de acordo com tais premissas, bem como analise o regime inicial mais adequado à nova punição e a possibilidade de conversão da pena em restritiva de direitos. O homem foi condenado a sete anos e seis meses de prisão em regime fechado, além de 750 dias-multa, pela prática de tráfico de drogas. A pena-base foi aumentada levando-se em conta a quantidade de droga apreendida (157 quilos de maconha), o que levou à presunção de dedicação a atividades criminosas. O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a decisão, que transitou em julgado. O ministro relator lembr...

Lugar do crime: teoria da ubiquidade (CP) ou do resultado (CPP)?

Eudes Quintino de Oliveira Junior Muitas vezes, ao se analisar os dispositivos contidos em nossa legislação (sejam de direto material ou processual), verifica-se que há regras aparentemente distintas e contraditórias, o que fatalmente acarreta uma série de dúvidas aos operadores do Direito, sem falar ainda dos estudantes do bacharelado e dos concursos públicos. Com efeito, dispõe o artigo 6º, do CP, que: considera-se praticado o crime no momento da ação, ou da omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado. Já o artigo 70, do CPP, diz que a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou , no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução. Pois bem, está caracterizada a aparente antinomia na área penal, em tema de lugar do crime. Os ventos são indicadores de furacão nos mares do sul. O CP diz que deve se considerar, como local onde praticada a infração penal, o lugar onde t...

Novo padrão probatório para testemunho policial em condenações criminais

Há tempos consolidou-se em nossos tribunais o entendimento pela validade dos depoimentos prestados por agentes estatais, havendo inclusive julgados afirmando que mereceriam maior crédito porque prestados por servidores, no exercício de suas funções. Entretanto, recentes decisões judiciais têm causado alteração no padrão de provas anteriormente exigido apontando no sentido de que as palavras dos policiais, como toda prova testemunhal, são passíveis de falhas, o que  recomenda (ou exige) a adoção, por parte do Estado, de cautelas maiores que a de simplesmente carrear à defesa o ônus de comprovar a parcialidade do agente ou de equívoco fático em seu testemunho. Não se pretende aqui colocar em xeque indistintamente a idoneidade dos agentes estatais, mas apenas apontar que a falibilidade de nossa memória e, portanto, da prova testemunhal em si, recomenda, como padrão probatório mínimo a fundamentar condenações criminais, a exigência de elementos outros, antes impossíveis devido ao "est...