Informativo n. 0414, STJ (Período: 2 a 6 de novembro de 2009).
As notas aqui divulgadas foram colhidas nas sessões de julgamento e elaboradas pela Assessoria das Comissões Permanentes de Ministros, não consistindo em repositórios oficiais da jurisprudência deste Tribunal.
QUARTA TURMA
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. REGISTRO.
Falecido o pai registral e diante da habilitação do recorrente como herdeiro, em processo de inventário, a filha biológica inventariante ingressou com ação de negativa de paternidade, ao buscar anular o registro de nascimento do recorrente sob alegação de falsidade ideológica. Anote-se, primeiramente, não haver dúvida sobre o fato de que o de cujus não é o pai biológico do recorrente. Quanto a isso, dispõe o art. 1.604 do que ninguém pode vindicar estado contrário ao que consta do registro de nascimento, salvo provando o erro ou a falsidade do registro. Assim, essas exceções só se dão quando perfeitamente demonstrado que houve vício de consentimento (erro, coação, dolo, fraude ou simulação) quando da declaração do assento de nascimento, particularmente a indução ao engano. Contudo, não há falar em erro ou falsidade se o registro de nascimento de filho não biológico decorre do reconhecimento espontâneo de paternidade mediante escritura pública (adoção à brasileira), pois, inteirado o pretenso pai de que o filho não é seu, mas movido pelo vínculo socioafetivo e sentimento de nobreza, sua vontade, aferida em condições normais de discernimento, está materializada. Há precedente deste Superior Tribunal no sentido de que o reconhecimento de paternidade é válido se refletir a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pai e filho, pois a ausência de vínculo biológico não é fato que, por si só, revela a falsidade da declaração da vontade consubstanciada no ato de reconhecimento. Dessarte, não dá ensejo à revogação do ato de registro de filiação, por força dos arts. 1.609 e 1.610 do REsp 709.608-MS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 5/11/2009.
NOTAS DA REDAÇAO
Conforme uma das hipóteses de posicionamento da Corte Superior, adotou o Tribunal da Cidadania no referido julgado a tese de parentesco firmado na socioafetividade. Vejamos os parâmetros que levaram nos dias atuais à adoção do referido posicionamento.
O conceito socioafetivo de família que tem por parâmetro a família moldada pela afetividade é novo.
No Brasil em um primeiro momento tinha-se a paternidade como um resultado da lei, denominada legal ou jurídica, calcada em uma presunção de ser filho do marido, aquele concebido por sua esposa:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Com o surgimento do exame de DNA, embora ainda prevista em lei a referida presunção, a mesma já não goza de tanto prestígio, compreendendo-se na acepção de pai, aquele reconhecido como doador do material genético pela ciência, denominando-se esta, como fase da paternidade científica ou biológica.
Em uma linha evolutiva, nos dias de hoje, passou-se a admitir a paternidade do coração, ou paternidade/maternidade de criação também denominada socioafetiva, assim entendida como aquela construída ao longo dos anos, e calcada em valores e sentimentos.
Tese esta construída à luz do princípio da afetividade, e como decorrência da desbiologização do Direito de Família sustentada no reconhecimento oficial do vínculo da filiação com base em valores e sentimentos construídos ao longo do tempo, uma vez que não seria razoável desconsiderar um vínculo que transcende a razão humana e que é pautado em uma relação construída ao longo dos anos.
Segundo este entendimento, ser genitor não é o mesmo que ser pai. O ideal seria que se unissem na mesma pessoa, mas em não sendo possível, os juízes não poderiam ser meros homologadores de laudo de DNA.
Outro fator a ser apreciado é o de que para o ordenamento jurídico brasileiro o registro de reconhecimento da paternidade é irrevogável (art. 1609 e 1610, CC), justamente por tratar-se de ato voluntário, ou do contrário ter-se-ia insegurança quanto aos atos registrários. Sua nulidade somente seria possível caso os fatos que lhe deram origem não fossem justificantes de sua realização nos termos da lei.
É fato que a decisão surge da soma da natureza jurídica do ato do registro, e de seu fundamento lastreado na socioafetividade.
Neste sentido, e com vistas a preservar o estado de filiação que considera o interesse do que é registrado, ou seja, o filho assim reconhecido por registro voluntário, é o brilhantismo do posicionamento da Ministra Nancy Andrighi (grifos nossos):
EMENTA : DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. CRIANÇA E ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL. AÇAO DE ANULAÇAO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. EXAME DE DNA. PATERNIDADE BIOLÓGICA EXCLUÍDA. INTERESSE MAIOR DA CRIANÇA. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
- As diretrizes devem ser muito bem fixadas em processos que lidam com direito de filiação, para que não haja possibilidade de uma criança ser desamparada por um ser adulto que a ela não se ligou, verdadeiramente, pelos laços afetivos supostamente estabelecidos quando do reconhecimento da paternidade. - A prevalência dos interesses da criança é o sentimento que deve nortear a condução do processo em que se discute de um lado o direito do pai de negar a paternidade em razão do estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito da criança de ter preservado seu estado de filiação. - O reconhecimento espontâneo da paternidade somente pode ser desfeito quando demonstrado vício de consentimento; não há como desfazer um ato levado a efeito com perfeita demonstração da vontade, em que o próprio pai manifestou que sabia perfeitamente não haver vínculo biológico entre ele e o menor e, mesmo assim, reconheceu-o como seu filho. - Valer-se como causa de pedir da coação irresistível, por alegado temor ao processo judicial, a embasar uma ação de anulação de registro de nascimento, consiste, no mínimo, em utilização contraditória de interesses, para não adentrar a senda da conduta inidônea, ou, ainda, da utilização da própria torpeza para benefício próprio; entendimento que se aplica da mesma forma ao fato de buscar o pai registral valer-se de falsidade por ele mesmo perpetrada. - O julgador deve ter em mente a salvaguarda dos interesses dos pequenos, porque a ambivalência presente nas recusas de paternidade é particularmente mutilante para a identidade das crianças, o que lhe impõe substancial desvelo no exame das peculiaridades de cada processo, no sentido de tornar, o quanto for possível, perenes os vínculos e alicerces na vida em desenvolvimento. - A fragilidade e a fluidez dos relacionamentos entre os seres humanos não deve perpassar as relações entre pais e filhos, as quais precisam ser perpetuadas e solidificadas; em contraponto à instabilidade dos vínculos advindos dos relacionamentos amorosos ou puramente sexuais, os laços de filiação devem estar fortemente assegurados, com vistas ao interesse maior da criança . Recursos especiais conhecidos e providos. (STJ, REsp 932692/DF, Min. Rel. Nancy Andrighi).
Assim, entendemos que a decisão em comento fortalece mais uma vez a possibilidade do reconhecimento do vínculo de parentesco fundado na socioafetividade, ficando protegida inclusive a filiação de eventuais rixas que surjam quando do processo de inventário de de cujus. Aliás, se voluntariamente registrada a criança, não só houve o reconhecimento do vínculo, mas a expressa manifestação de se reconhecer tal pessoa como seu legítimo sucessor. Nada mais razoável, que a lei e o Judiciário reconhecerem essa relação.
As notas aqui divulgadas foram colhidas nas sessões de julgamento e elaboradas pela Assessoria das Comissões Permanentes de Ministros, não consistindo em repositórios oficiais da jurisprudência deste Tribunal.
QUARTA TURMA
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. REGISTRO.
Falecido o pai registral e diante da habilitação do recorrente como herdeiro, em processo de inventário, a filha biológica inventariante ingressou com ação de negativa de paternidade, ao buscar anular o registro de nascimento do recorrente sob alegação de falsidade ideológica. Anote-se, primeiramente, não haver dúvida sobre o fato de que o de cujus não é o pai biológico do recorrente. Quanto a isso, dispõe o art. 1.604 do que ninguém pode vindicar estado contrário ao que consta do registro de nascimento, salvo provando o erro ou a falsidade do registro. Assim, essas exceções só se dão quando perfeitamente demonstrado que houve vício de consentimento (erro, coação, dolo, fraude ou simulação) quando da declaração do assento de nascimento, particularmente a indução ao engano. Contudo, não há falar em erro ou falsidade se o registro de nascimento de filho não biológico decorre do reconhecimento espontâneo de paternidade mediante escritura pública (adoção à brasileira), pois, inteirado o pretenso pai de que o filho não é seu, mas movido pelo vínculo socioafetivo e sentimento de nobreza, sua vontade, aferida em condições normais de discernimento, está materializada. Há precedente deste Superior Tribunal no sentido de que o reconhecimento de paternidade é válido se refletir a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pai e filho, pois a ausência de vínculo biológico não é fato que, por si só, revela a falsidade da declaração da vontade consubstanciada no ato de reconhecimento. Dessarte, não dá ensejo à revogação do ato de registro de filiação, por força dos arts. 1.609 e 1.610 do REsp 709.608-MS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 5/11/2009.
NOTAS DA REDAÇAO
Conforme uma das hipóteses de posicionamento da Corte Superior, adotou o Tribunal da Cidadania no referido julgado a tese de parentesco firmado na socioafetividade. Vejamos os parâmetros que levaram nos dias atuais à adoção do referido posicionamento.
O conceito socioafetivo de família que tem por parâmetro a família moldada pela afetividade é novo.
No Brasil em um primeiro momento tinha-se a paternidade como um resultado da lei, denominada legal ou jurídica, calcada em uma presunção de ser filho do marido, aquele concebido por sua esposa:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Com o surgimento do exame de DNA, embora ainda prevista em lei a referida presunção, a mesma já não goza de tanto prestígio, compreendendo-se na acepção de pai, aquele reconhecido como doador do material genético pela ciência, denominando-se esta, como fase da paternidade científica ou biológica.
Em uma linha evolutiva, nos dias de hoje, passou-se a admitir a paternidade do coração, ou paternidade/maternidade de criação também denominada socioafetiva, assim entendida como aquela construída ao longo dos anos, e calcada em valores e sentimentos.
Tese esta construída à luz do princípio da afetividade, e como decorrência da desbiologização do Direito de Família sustentada no reconhecimento oficial do vínculo da filiação com base em valores e sentimentos construídos ao longo do tempo, uma vez que não seria razoável desconsiderar um vínculo que transcende a razão humana e que é pautado em uma relação construída ao longo dos anos.
Segundo este entendimento, ser genitor não é o mesmo que ser pai. O ideal seria que se unissem na mesma pessoa, mas em não sendo possível, os juízes não poderiam ser meros homologadores de laudo de DNA.
Outro fator a ser apreciado é o de que para o ordenamento jurídico brasileiro o registro de reconhecimento da paternidade é irrevogável (art. 1609 e 1610, CC), justamente por tratar-se de ato voluntário, ou do contrário ter-se-ia insegurança quanto aos atos registrários. Sua nulidade somente seria possível caso os fatos que lhe deram origem não fossem justificantes de sua realização nos termos da lei.
É fato que a decisão surge da soma da natureza jurídica do ato do registro, e de seu fundamento lastreado na socioafetividade.
Neste sentido, e com vistas a preservar o estado de filiação que considera o interesse do que é registrado, ou seja, o filho assim reconhecido por registro voluntário, é o brilhantismo do posicionamento da Ministra Nancy Andrighi (grifos nossos):
EMENTA : DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. CRIANÇA E ADOLESCENTE. RECURSO ESPECIAL. AÇAO DE ANULAÇAO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. EXAME DE DNA. PATERNIDADE BIOLÓGICA EXCLUÍDA. INTERESSE MAIOR DA CRIANÇA. AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
- As diretrizes devem ser muito bem fixadas em processos que lidam com direito de filiação, para que não haja possibilidade de uma criança ser desamparada por um ser adulto que a ela não se ligou, verdadeiramente, pelos laços afetivos supostamente estabelecidos quando do reconhecimento da paternidade. - A prevalência dos interesses da criança é o sentimento que deve nortear a condução do processo em que se discute de um lado o direito do pai de negar a paternidade em razão do estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito da criança de ter preservado seu estado de filiação. - O reconhecimento espontâneo da paternidade somente pode ser desfeito quando demonstrado vício de consentimento; não há como desfazer um ato levado a efeito com perfeita demonstração da vontade, em que o próprio pai manifestou que sabia perfeitamente não haver vínculo biológico entre ele e o menor e, mesmo assim, reconheceu-o como seu filho. - Valer-se como causa de pedir da coação irresistível, por alegado temor ao processo judicial, a embasar uma ação de anulação de registro de nascimento, consiste, no mínimo, em utilização contraditória de interesses, para não adentrar a senda da conduta inidônea, ou, ainda, da utilização da própria torpeza para benefício próprio; entendimento que se aplica da mesma forma ao fato de buscar o pai registral valer-se de falsidade por ele mesmo perpetrada. - O julgador deve ter em mente a salvaguarda dos interesses dos pequenos, porque a ambivalência presente nas recusas de paternidade é particularmente mutilante para a identidade das crianças, o que lhe impõe substancial desvelo no exame das peculiaridades de cada processo, no sentido de tornar, o quanto for possível, perenes os vínculos e alicerces na vida em desenvolvimento. - A fragilidade e a fluidez dos relacionamentos entre os seres humanos não deve perpassar as relações entre pais e filhos, as quais precisam ser perpetuadas e solidificadas; em contraponto à instabilidade dos vínculos advindos dos relacionamentos amorosos ou puramente sexuais, os laços de filiação devem estar fortemente assegurados, com vistas ao interesse maior da criança . Recursos especiais conhecidos e providos. (STJ, REsp 932692/DF, Min. Rel. Nancy Andrighi).
Assim, entendemos que a decisão em comento fortalece mais uma vez a possibilidade do reconhecimento do vínculo de parentesco fundado na socioafetividade, ficando protegida inclusive a filiação de eventuais rixas que surjam quando do processo de inventário de de cujus. Aliás, se voluntariamente registrada a criança, não só houve o reconhecimento do vínculo, mas a expressa manifestação de se reconhecer tal pessoa como seu legítimo sucessor. Nada mais razoável, que a lei e o Judiciário reconhecerem essa relação.
Autor: Flavia Adine Feitosa Coelho
Extraído de: Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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