Pular para o conteúdo principal

STF e a Combinação da Legislação de Tráfico de Drogas

O Supremo e a combinação de leis
no tráfico de drogas
Por Pierpaolo Cruz Bottini

Em recente julgamento, os ministros do STF discutiram acirradamente sobre a viabilidade jurídica da chamada combinação de leis em casos de tráfico de drogas. O problema: a antiga lei de drogas (Lei 6.638/76) estabelecia para o traficante uma pena de 3 a 15 anos de prisão, e não previa qualquer causa de diminuição desta mesma pena. O novo texto legal (Lei 11.343/06) fixou uma pena maior para o traficante (5 a 15 anos) mas, por outro lado, criou uma causa de diminuição de 1/6 a 2/3 se o réu for primário, tiver bons antecedentes e não integrar organização criminosa (art.33, §4º).

Em outras palavras: se a nova lei, por um lado, é prejudicial ao réu, vez que aumenta a pena, por outro é benéfica, porque cria minorante antes inexistente.

O centro do debate: a Constituição e o Código Penal apontam que a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o réu. No caso, parte da nova lei beneficia o réu (criação de uma causa de diminuição) e parte o prejudica (aumento da pena). A questão: é possível fazer retroagir apenas os dispositivos mais benéficos e impedir a aplicação dos mais graves? Eis a discussão no RE 596152/SP no STF.

A discussão não é nova, vez que a suposta combinação de leis já foi debatida quando da alteração das regras de livramento condicional (STF, HC 68416) e das modificações do art.366 do CPP sobre citação por edital (embora aqui a discussão misture questões penais com processuais), dentre outros casos.

No caso da lei de drogas, os ministros Lewandowski, Carmen Lucia, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Marco Aurélio decidiram pela unidade legal. Reconheceram que a lei penal mais benéfica retroage, mas negaram a possibilidade da retroação em partes ou em tiras, com base em doutrina de Hungria Aníbal Bruno, Heleno Cláudio Fragoso, Jair Leonardo Lopes, Paulo José da Costa Júnior, Von Lizt, Claus Roxin. Para eles, ou bem se aplica a nova lei na integra – com a pena maior e com a causa de diminuição — ou vale a lei anterior, também na integra – com a pena menor e sem a causa de diminuição. A retroação de apenas parte da lei, e sua mescla com dispositivos do texto anterior, criaria uma terceira lei incompatível com a vontade do legislador.

Os ministros Ayres Britto, Cesar Peluso, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello entenderam de outra forma. Para eles, será impossível aplicar a pena mais grave da nova lei porque evidentemente prejudicial ao réu, mas é perfeitamente adequada a causa de diminuição porque tal novidade beneficia o acusado. O juiz — no caso concreto — não criaria uma nova lei, “mas se movimentaria dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente possível” (voto Min. Peluso). Na doutrina, adotam posição semelhante Cezar Bittencourt, Magalhães Noronha, José Frederico Marques, Francisco de Assis Toledo, Damásio de Jesus e Celso Delmanto.

A segunda posição parece mais adequada. Não se trata da aplicação de partes da nova lei e de partes da lei mais antiga, mas apenas de reconhecer a aplicação integral da lei anterior — mais benéfica — com a retroatividade da causa de diminuição da lei nova. Não há a criação de uma terceira lei, mas apenas a concretização, naquele caso, de um preceito constitucional. Trata-se de uma interpretação conforme a Constituição diante de dois textos legais e de um texto constitucional.

Se o legislador decidiu aumentar a pena para o tráfico, é claro que tal previsão não se aplica para os fatos anteriores à lei. Por outro lado, o mesmo legislador entendeu que a gravidade do tráfico é diminuída quando o réu é primário e não participa de organização criminosa. Significa que reconheceu que tal comportamento merece um beneficio — independente de quando foi praticado — e não há justificativa para negar sua aplicação para fatos anteriores. E esta causa de diminuição não esta em conflito com qualquer norma anterior, é inédita, e — como afirmou o Ministro Ayres Britto em eu voto — “por força mesma do seu ineditismo, não se contrapõe a qualquer anterior regra penal”.

Imaginemos o seguinte: se a lei antiga fosse alterada por duas novas leis a invés de apenas uma. A primeira disporia apenas sobre a causa de diminuição, criando a nova minorante para réus primários, sem mencionar qualquer alteração na pena para o tráfico. A segunda se limitaria a aumentar a pena para o crime de tráfico de drogas, sem tratar de causa de diminuição. Nesta hipótese, parece indubitável que a primeira lei retroagiria e a segunda lei não afetaria casos anteriores. Não haveria celeuma ou discussão.

Ora, se este raciocínio vale para a hipótese de aprovação de duas leis distintas, por que não se aplica ao caso em questão, onde a única diferença é que os dispositivos estão no mesmo texto legal? Será que essa diferença formal é suficiente para impedir a mesma solução?

Parece que não. Ainda que estejam na mesma lei, são normas distintas, que regulamentam situações diversas, uma atinente ao tipo penal objetivo, e outra referente a circunstâncias que minoram a pena de acordo com as características do agente. Poderiam estar em leis diferentes. Se não estão, é por questão de técnica legislativa, mas isso não impede a aplicação da regra constitucional da retroatividade benéfica à norma da causa de diminuição.

Mas o debate está longe do fim. A controvérsia no STF resultou em empate (5x5). O empate beneficia o réu (RISTF, art.146), razão pela qual prevaleceu a segunda posição, que admite a combinação de leis, mas o assunto não é pacífico e deve retornar à pauta da Corte em breve. A ver.

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Dica de Leitura
Lei de Drogas Comentada de César Dario Mariano da Silva. Clique e saiba mais


Fonte: Conjur

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Justiça Militar pode decretar perda de posto e patente por qualquer tipo de crime

A Justiça Militar, onde houver, ou o Tribunal de Justiça são competentes para decidir sobre a perda do posto e da patente ou da graduação da praça militar em casos de oficiais com sentença condenatória, independentemente da natureza do crime cometido.  O entendimento é do Supremo Tribunal Federal. O julgamento do plenário virtual, que tem repercussão geral reconhecida (Tema 1.200) ocorreu de 16 a 23 de junho. O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, foi acompanhado por todos os demais integrantes da corte.  "Nada obsta ao Tribunal de Justiça Militar Estadual, após o trânsito em julgado da ação penal condenatória e por meio de procedimento específico, que examine a conduta do militar e declare a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças como sanção secundária decorrente da condenação à luz do sistema de valores e do código de ética militares", disse Alexandre em seu voto.  O tribunal fixou a seguinte tese: 1) A perda da graduação da praça pode

STJ vai reanalisar posição sobre salvo-conduto para produzir óleo de maconha

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça vai se debruçar sobre a necessidade de alterar a  recente posição  das turmas criminais da corte que tem assegurado a pessoas enfermas a possibilidade de plantar maconha e produzir óleo canabidiol em suas próprias casas. Essa posição foi construída pelo tribunal ao longo do ano passado. Em junho, a  6ª Turma  abriu as portas para a concessão de salvo-conduto em favor de pacientes que, em tese, poderiam ser processados por tráfico de drogas. A 5ª Turma  unificou a jurisprudência  em novembro. Em sessão da 5ª Turma nesta terça-feira (20/6), o ministro Messod Azulay, que não participou da formação desses precedentes porque só tomou posse no cargo em dezembro de 2022, propôs uma revisão da posição para tornar inviável a concessão de salvo-conduto. A proposta foi acompanhada pelo desembargador João Batista Moreira, que também não integrava o colegiado até fevereiro deste ano, quando foi convocado junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região para

Goiânia: Anulação de Casamento - Esposa Grávida e Marido Virgem!!

Marido virgem anula casamento com a mulher grávida A juíza Sirlei Martins da Costa, da 2ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia, julgou procedente o pedido de anulação de casamento realizado por um rapaz recém-casado. O autor da ação alega que, embora não mantivesse relações sexuais com a então noiva, descobriu, durante a lua-de-mel, que a esposa estava grávida. Citada na ação, a esposa contestou a alegação do marido. Durante a audiência, porém, reconheceu os fatos, dizendo que, durante o namoro, era seguidora de uma igreja evangélica. Disse que, com base em sua crença religiosa, convenceu o noivo de que não podia manter relações com ele antes do casamento. Ainda de acordo com a mulher, ela casou-se grávida, mas só descobriu a gravidez durante a lua-de-mel, e assumiu que o marido não podia ser o pai. Para a juíza, o depoimento pessoal da mulher é prova da existência de um dos requisitos para a anulação do casamento. A juíza determinou a expedição de documentos necessários para que