O crime de porte ilegal de arma de fogo, após a entrada em vigor da Lei 10.826/2003, é crime de perigo abstrato, para cuja caracterização não importa o resultado concreto da ação. O posicionamento é da Segunda Turma do STF no julgamento do HC 96759/CE, rel. Min. Joaquim Barbosa (7.12.2010).
No presente julgamento dois posicionamentos surgiram: o do Min. relator Joaquim Barbosa, tese vencedora. Para ele, como ainda não há posicionamento pacífico na Corte sobre a tipicidade do porte ilegal de arma de fogo sem munição, entendeu que deveria prevalecer, especialmente após a entrada em vigor da Lei 10.826/2003, corrente segundo a qual a hipótese seria de crime de perigo abstrato, para cuja caracterização não importaria o resultado concreto da ação (Informativo 656).
De outro lado, vencido o Min. Celso de Mello, reconhecia a posição majoritária da Turma no sentido de que, para a configuração do crime em comento, é relevante que a arma esteja municiada ou que, ao menos, tivesse o agente acesso livre e imediato à munição para que houvesse a tipicidade delitiva (Informativo 656).
Já nos posicionamos diversas vezes sobre o assunto e temos firme entendimento no seguinte sentido:
A função do Direito penal é a proteção de bens jurídicos relevantes diante de ataques concretos e intoleráveis (essa é a premissa da nossa teoria constitucionalista do delito). Para que se justifique a tipificação penal de uma conduta é necessário verificar se houve (ou não) lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido (desvalor do resultado jurídico).
Para os que entendem que a arma de fogo desmuniciada possui potencialidade lesiva concreta bastaria a ação (desvalor da ação) para a configuração do crime, pois cuidaria de perigo abstrato (entendimento da Segunda Turma do STF no julgado em comento – HC 96.759/CE).
O crime (portar arma de fogo), no plano formal, é de mera conduta. No plano jurídico-material é um crime de perigo (perigo de lesão). Por força do princípio da ofensividade, sem a comprovação efetiva do perigo (concreto) não existe crime.
O bem jurídico protegido é a incolumidade pública (de forma direta) assim como bens jurídicos pessoais tais como a vida, integridade física etc. (de forma indireta). A arma de fogo (municiada ou desmuniciada) tem poder de intimidação, mas no caso da arma de fogo o perigo concreto exige: (a) idoneidade ofensiva da arma e (b) disponibilidade de uso (tal como o STF havia afirmado no RHC 81.057).
Arma desmuniciada não provoca risco concreto para ninguém, logo não serve para a configuração do delito (isolado, de porte de arma). Ela serve para intimidar (e é por isso que pode configurar o delito de roubo, quando usada no contexto de uma subtração).
Não devemos confundir poder de intimidação (da arma desmuniciada ou de brinquedo) com potencialidade lesiva. Resta evidenciado que não há potencialidade lesiva concreta na arma desmuniciada. Entender de outra forma implicaria em violação ao princípio da ofensividade e desrespeito ao caráter fragmentário e subsidiário do Direito penal.
Sob o império do populismo penal e do “direito” penal do inimigo as clássicas garantias penais e processuais vão sendo derrubadas uma a uma. É crescente a degeneração do velho e garantista direito penal liberal. Em pleno século XXI ainda se admite o perigo abstrato no sistema punitivo brasileiro. Nesse ponto, a rigor, não se cuida de retrocesso, sim, de falta de avanço (o princípio da ofensividade nunca ganhou o status que merece). O perigo abstrato é típico do direito administrativo, que trabalha com referenciais estatísticos.
A antecipação da tutela penal fundada no perigo abstrato é um exagero e revela total desproporcionalidade. Arma desmuniciada (e sem nenhuma perspectiva de munição) não é “arma” (sim, um pedaço de aço). E não é arma porque não dispara. E se não dispara não tem idoneidade ofensiva, ou seja, não tem capacidade para afetar os bens jurídicos vida, integridade física etc. Não se pode confundir idoneidade lesiva da arma com capacidade intimidativa (para o cometimento de roubo, por exemplo). Cada coisa no seu devido lugar, como bem reconheceu o Min. Pertence no RHC 81.057. Em comparação com esse RHC, sim, está havendo retrocesso do STF. Na era do “direito” penal do inimigo…
*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter. Assine meu Facebook. Inscreva-se na Escola da Vida (YouTube).
Fonte: Atualidades do Direito
Comentários
Postar um comentário