Pular para o conteúdo principal

O bom senso está cada vez mais longe do Direito

Vladimir Passos de Freitas
Desembargador Federal aposentado do TRF 4ª Região e professor Dr. de Direito Ambiental da PUC-PR


O estudante de Direito, mal entrava no primeiro ano da faculdade, já escutava a frase: “Direito é bom senso”. Dita de forma clara e objetiva, não permitia intrincadas regras de hermenêutica. O jovem acadêmico já sabia que, ao analisar uma questão jurídica, deveria seguir o que é mais lógico, o meio termo, o razoável. Mais recentemente, a máxima foi elevada a um grau maior de sofisticação. Abandonada a sua singeleza, alargado seu campo de incidência, foi rebatizada com o nome de “princípio da razoabilidade”.

Luis Roberto Barroso, com sua habitual clareza, ensina que “sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar” (Interpretação e aplicação da Constituição, Saraiva, pgs. 204/205).

Mas, de uma ou de outra forma, o fato é que o Direito parece encaminhar-se mais para a consagração de teorias do que para soluções com foco na realidade. A doutrina, a partir de trabalhos acadêmicos, a lei e, por fim, a jurisprudência, vão adotando o dever ser em prejuízo do ser. A discussão de teses é mais sedutora do que a de fatos. Vejamos.

O Código de Defesa do Consumidor, que representou um louvável e significativo avanço nas relações de consumo, mudando para melhor a realidade brasileira, permite ao autor ingressar em juízo individualmente (art. 81). Por sua vez a Lei 9.099/95, que trata dos Juizados Especiais, faculta ao autor ingressar com a ação no seu domicílio e sem o pagamento de custas ou outras despesas, como honorários advocatícios (arts. 4º, inc. III e 54).

Pois bem, se uma pessoa mal intencionada propõe no Juizado Especial Cível do Oiapoque (AP) uma ação, contra uma empresa do Chuí (RS), esta, para defender-se, terá que deslocar-se da fronteira do Uruguai para a da Guiana Francesa. E, se ganhar a ação, resta-lhe, se conseguir provar a má-fé, ver o autor ser condenado nas custas (art. 55, I). Sem outra sanção de qualquer espécie.

Este exemplo não é fruto de uma mente criativa. Ao contrário, vem ocorrendo cada vez com mais frequência e pelos mais diversos motivos. E os Autores, vencidos, certamente se divertem com a fragilidade do sistema, que não lhes impõe nenhum tipo de sanção. A falta de bom senso não passaria despercebida à Tia Anastácia, imortal personagem de Monteiro Lobato no Sítio do Picapau Amarelo.

Os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, criados em 1995, foram decisivamente um dos maiores passos dados na efetividade da Justiça. Informais, céleres, neles se busca sempre a conciliação (art. 2º). Só que, mesmo se reconhecendo que são destinados a pequenas causas (nome depois abandonado em homenagem ao “princípio da sofisticação”), admitem recurso ao Supremo Tribunal Federal. Interposto perante o Coordenador da Turma Recursal, mesmo que denegado ou não conhecido, atrasará a execução por longo tempo. Se o recurso extraordinário for contra decisão criminal, a prescrição pela pena aplicada estará praticamente assegurada, já que as penas são sempre pequenas.

As ações populares e as de improbidade administrativa também merecem referência. A antiga Lei 4.717/65 foi uma inovação sábia ao permitir que qualquer cidadão pudesse pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União e das demais pessoas jurídicas de Direito Público, bem como de empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas e serviços sociais autônomos. Da mesma forma as ações civis públicas relacionadas com atos de improbidade administrativa, reguladas pela Lei 8.429/92. A lei é ótima, óbvio. Nada mais lógico do que os agentes públicos serem responsabilizados por enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional.

O problema está no fato de que estas ações, depois de propostas, não terminam antes de muitos anos se passarem. E no caso das ações populares, um percentual elevado é fruto de vinganças políticas. No caso das ações civis públicas por improbidade administrativa, uma simples e subjetiva conclusão do agente do Ministério Público, no sentido de que houve ofensa a um dos princípios do art. 37 da Constituição (p. ex., princípio da eficiência), pode lançar um agente público à condição infamante de ímprobo por 8, 10 ou 12 anos. Por vezes com seus bens indisponíveis.

O que se está a dizer não é que estas ações sejam cerceadas, mas sim que: a) devem passar por rigorosa análise judicial antes de serem recebidas, face às consequências que delas se irradiam; b) as ações propostas com má-fé, com irresponsabilidade, devem sujeitar seus autores à responsabilidade pessoal pelos danos causados. Na falta de bom senso é preciso algum tipo de sanção a quem agir de forma irresponsável.

Enquanto tais dificuldades se sucedem, a PEC 513/10, da deputada Manuela D'Ávila (PCdoB-RS), procura incluir no art. 6º da Constituição o direito à busca da felicidade como objetivo fundamental da República. Como se trata de uma iniciativa baseada em precedentes já existentes (p. ex., a Declaração de Direitos da Virgínia, EUA, 1776), seria interessante sabermos se naquele estado norte-americano as pessoas se tornaram mais felizes. De minha parte, penso que o tempo dos congressistas seria mais bem empregado se, ao invés de preocupar-se com a busca da felicidade, simplesmente se esforçassem para que fosse cumprido o art. 144 da Carta Magna, que afirma ser a segurança pública direito de todos os brasileiros.

Em suma, a singeleza da frase “Direito é bom senso”, aplicada em sentido amplo com real intenção de resolver impasses jurídicos, parece-me que auxiliaria em muito na solução dos problemas jurídicos. Um pouco mais da clareza de pensamento da Tia Anastácia talvez produzisse melhores resultados do que os intrincados raciocínios dos jus-filósofos europeus do momento.


Fonte: Conjur

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Justiça Militar pode decretar perda de posto e patente por qualquer tipo de crime

A Justiça Militar, onde houver, ou o Tribunal de Justiça são competentes para decidir sobre a perda do posto e da patente ou da graduação da praça militar em casos de oficiais com sentença condenatória, independentemente da natureza do crime cometido.  O entendimento é do Supremo Tribunal Federal. O julgamento do plenário virtual, que tem repercussão geral reconhecida (Tema 1.200) ocorreu de 16 a 23 de junho. O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, foi acompanhado por todos os demais integrantes da corte.  "Nada obsta ao Tribunal de Justiça Militar Estadual, após o trânsito em julgado da ação penal condenatória e por meio de procedimento específico, que examine a conduta do militar e declare a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças como sanção secundária decorrente da condenação à luz do sistema de valores e do código de ética militares", disse Alexandre em seu voto.  O tribunal fixou a seguinte tese: 1) A perda da graduação da praça pode

STJ vai reanalisar posição sobre salvo-conduto para produzir óleo de maconha

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça vai se debruçar sobre a necessidade de alterar a  recente posição  das turmas criminais da corte que tem assegurado a pessoas enfermas a possibilidade de plantar maconha e produzir óleo canabidiol em suas próprias casas. Essa posição foi construída pelo tribunal ao longo do ano passado. Em junho, a  6ª Turma  abriu as portas para a concessão de salvo-conduto em favor de pacientes que, em tese, poderiam ser processados por tráfico de drogas. A 5ª Turma  unificou a jurisprudência  em novembro. Em sessão da 5ª Turma nesta terça-feira (20/6), o ministro Messod Azulay, que não participou da formação desses precedentes porque só tomou posse no cargo em dezembro de 2022, propôs uma revisão da posição para tornar inviável a concessão de salvo-conduto. A proposta foi acompanhada pelo desembargador João Batista Moreira, que também não integrava o colegiado até fevereiro deste ano, quando foi convocado junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região para

Goiânia: Anulação de Casamento - Esposa Grávida e Marido Virgem!!

Marido virgem anula casamento com a mulher grávida A juíza Sirlei Martins da Costa, da 2ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia, julgou procedente o pedido de anulação de casamento realizado por um rapaz recém-casado. O autor da ação alega que, embora não mantivesse relações sexuais com a então noiva, descobriu, durante a lua-de-mel, que a esposa estava grávida. Citada na ação, a esposa contestou a alegação do marido. Durante a audiência, porém, reconheceu os fatos, dizendo que, durante o namoro, era seguidora de uma igreja evangélica. Disse que, com base em sua crença religiosa, convenceu o noivo de que não podia manter relações com ele antes do casamento. Ainda de acordo com a mulher, ela casou-se grávida, mas só descobriu a gravidez durante a lua-de-mel, e assumiu que o marido não podia ser o pai. Para a juíza, o depoimento pessoal da mulher é prova da existência de um dos requisitos para a anulação do casamento. A juíza determinou a expedição de documentos necessários para que