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Você sabe o que é “crossdressing”?

Eudes Quintino de Oliveira Junior

Aconteceu um interessante fato na cidade de São Paulo: uma mulher vestindo uma minissaia jeans entra no toalete feminino de um restaurante. Posteriormente, ao tentar retornar, é proibida de usar o mesmo sanitário, pelo proprietário do estabelecimento. A mulher foi reconhecida por uma cliente como sendo o cartunista do jornal Folha de São Paulo, que há três anos veste roupas femininas e é adepto do crossdressing (pessoa que veste roupas ou utiliza objetos do outro sexo).

O imbróglio ganhou corpo, circulou pelas redes sociais e chegou até a Secretaria da Justiça que, na manifestação da titular da Pasta, Heloisa Alves, ocorreu um caso de violação à lei estadual nº 10.948/2001, que trata da discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.

A natureza do homem, apesar de carregar regras inflexíveis, todas lastreadas em conceitos fincados como dogmas, vai lentamente se diluindo e se amoldando às novas realidades. É uma adequação que se faz necessária e diferencia os homens de suas épocas. E tudo no passar de um tempo muito curto. Basta ver que Machado de Assis, cujo centenário de morte foi comemorado recentemente, com seu estilo inconfundível de narrador, retratou a forma pudica do relacionamento amoroso entre um homem e uma mulher: começava com o flerte, após considerável tempo chegava ao noivado e daí para o casamento, contando com a aprovação da família. Mas sem qualquer relato de cena que revelasse sensualidade ou até mesmo diversidade de opção sexual.


O caso relatado acima é o resultado da liberdade inerente a cada um de ousar ser o que quiser. Trata-se um novo parâmetro identitário com erupções temporárias, que nem mesmo a lei, reguladora que é do controle social, consegue enunciar uma regra que seja coerente e aceitável, de acordo com um padrão ético. Na realidade, a ética, pela sua própria origem e essência, é variável a cada cultura, a cada geração, mas sempre se faz presente com sua relevante contribuição, jorrando suas convicções morais sobre temas relevantes e que exigem soluções. Por isso é evolutiva e dinâmica.

Há, pois, necessidade premente de abrir novos espaços para deixar aflorar uma ética condizente com a realidade atual. De nenhuma valia é a ética que não se coaduna com o dinamismo e a evolução do ser humano. Quanto maior o grau de desenvolvimento humano para alcançar o estágio do bem-estar, maior será a elasticidade do pensamento ético. A própria etimologia da palavra ética indica movimento sempre adiante, sem se desviar, buscando o aprimoramento da vida humana.

A lei permite a realização da cirurgia de transgenitalização de pessoa que carrega as genitálias internas e externa perfeitas, porém em total desajuste com sua mente, que já se amoldou ao sexo oposto. A falta de sintonia e conjugação dos fatores corpo e mente acarreta transtornos que impossibilitam o cidadão de encontrar sua verdadeira inclinação sexual, como também exige uma carga supletiva de efetiva proteção legal para o exercício e a defesa de seus direitos consagrados nas políticas para a diversidade sexual.

A definição da identidade sexual faz parte da liberdade de escolha da pessoa, porém carrega consequências diretas nas relações complexas que desenvolve com os outros membros da comunidade. Daí que tal liberdade, assim como qualquer outra, é atingida por restrições sociais que são impostas para a garantia da liberdade de todos. É o pensamento de Rousseau refletido no cri de coeur, pelo qual o homem nasce livre, porém faz parte de um grupo social e é acorrentado pelas regras da organização de que faz parte. Ou, como quer Lloyd, a ocorrência da liberdade negativa, como sendo “o respeito à organização do modelo de sociedade de tal modo que, apesar de todas as limitações e restrições que são impostas à ação individual em benefício da sociedade como um todo, subsiste, não obstante, uma esfera para a escolha e a iniciativa individuais, tão ampla quanto for compatível com o bem estar comum”.

Desta forma, seguindo rigorosamente os mandamentos sociais, é se se concluir que se um homem que traja vestes femininas e se submeteu à cirurgia de ablação das genitálias para o ajustamento sexual, assim como realizou todo o procedimento legal para a retificação de seus documentos pessoais, conforme permitido por nossos Tribunais, é considerado mulher para todos os efeitos e não sofrerá qualquer impasse na inserção social e profissional.

No entanto, a dúvida paira a respeito do crossdressing, compreendendo aqui aquele que veste roupas de outro sexo, pois sua conduta não está relacionada com a orientação sexual, uma vez que pode muito bem apesentar-se como heterossexual, homossexual, bissexual, totalmente divorciado da transexualidade.

Assim, no caso narrado, a título de exemplo, se por ventura a pessoa que utilizou o sanitário feminino fosse agredida, não se aplicaria em favor dela a Lei Maria da Penha e nem qualquer outra que tutela os direitos da mulher. Nem mesmo poderia ser submetida a uma busca pessoal por um por uma policial. O sexo estabelece o parâmetro protetivo.

Alegar a pessoa que é um crossdresser e, como tal, ganhar espaços que são destinados a outro sexo, não parece conduta recomendada e protegida pela legislação brasileira, sem falar ainda da insegurança e constrangimento dos frequentadores e pela quebra dos padrões estabelecidos pela comunidade. A verdadeira identidade tem que ser expressa de forma harmônica, de acordo com o sexo definido pela pessoa, levando-se em consideração suas atitudes, ações, modo de vida, enfim, tudo aquilo que possa contribuir para atingir os contornos da dignidade da pessoa humana, apregoada na Constituição Federal. O que não poderá ocorrer é a dupla faceta, sem uma identidade definida, esbarrando e molestando a todo instante naqueles que vivem sua identidade sexual definida.

Outra seria a interpretação se o crossdresser tivesse sido recriminado em local púbico, de acesso a ilimitado número de pessoas. Aí, em razão do princípio da isonomia, que confere direitos a todos os cidadãos a praticar tudo aquilo que não é proibido nas regras da organização democrática, ocorreria a discriminação repudiada pela lei paulista. Trata-se agora de local público, franqueado a todas as pessoas, independentemente de credo, opção sexual ou outras circunstâncias diferenciadoras.

Mas, em local de uso restrito a determinada categoria de sexo não pode ser invocada tal franquia, pois no conflito de bens tutelados, prevalecerá o individual sobre o coletivo, afrontando o princípio da proporcionalidade tão bem defendido por Canotilho.
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Lloyd, Dennis. A ideia de lei. Tradução Álvaro Cabral. 
São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 167.

Fonte: Atualidades do Direito

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