O STJ (Superior Tribunal de Justiça) protagonizou nesta semana dois importantes episódios de relevantes reflexos para a análise do Direito Penal pátrio.
O primeiro deles se refere a requisitos probatórios em casos de delito de trânsito, sendo agora exigidos o teste do bafômetro ou o exame de sangue para atestar o grau de embriaguez do motorista e desencadear uma ação penal. A decisão remete o problema ao Legislativo e, apesar de polêmica, pelo menos faz com que esse tema, dos crimes praticados ao volante, seja discutido com mais propriedade do que vinha sendo feito.
Todavia, a decisão mais importante não é essa. O julgado de maior destaque e relevância é aquele referido aos casos de estupro em que há violência presumida quando a vítima é menor de 14 anos.
A decisão do STJ é logicamente simples, mas teoricamente complexa por adentrar, por meio de um caso concreto, numa profunda forma de análise do Direito Penal e de sua relação com a interpretação da lei e o contraste com a realidade.
Os mais apressados não tardaram a criticar a decisão, dizendo que afronta princípios de proteção à infância e juventude – especificamente o princípio da proteção absoluta, garantido pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e pela Constituição. Quem tem experiência com criminalidade infanto-juvenil sabe que o referido princípio é o mais desprezado e aviltado pela prática político-administrativa de nossos governantes.
O ECA, em termos penais, é muito pior que o Código Penal porque o jovem que comete qualquer delito em que haja suposta violência, a pena é a mesma: internação em unidade de “assistência” educacional, ou seja, numa cadeia da pior espécie, que reproduz absolutamente o modelo prisional dos adultos.
A decisão do STJ trata especificamente da categoria de presunção a que se refere o texto da lei. A norma fala que a violência é presumida quando a vítima é menor de 14 anos. O julgado não retira a presunção, ela está mantida, mas sua modalidade não é absoluta e sim relativa. Que significa isso?
Presunção é um capítulo de estudos da lógica e da epistemologia. Uma parte da doutrina penal tende a endemonizar a presunção, como se fosse algo execrável, intocável, imutável, inacabável, inatacável, intangível, inalterável. Lembrando um Ministro do Trabalho de um governo remoto, a presunção seria “imexível”.
Mas não é nada disso. Presunção é uma forma de aproximação para se conhecer as coisas. Em qualquer processo epistemológico, parte-se de uma hipótese qualquer, um fato; a partir do qual realiza-se um procedimento de justificação para se chegar a uma conclusão. Se essa conclusão confirmar o fato, a hipótese é verdadeira e se tem um conhecimento mais profundo e uma certeza sobre aquele fato. O processo penal é um exemplo de procedimento epistemológico.
A presunção é uma classificação inicial da hipótese. Tem-se uma presunção, quando a hipótese é muito próxima da verdade ou do conhecimento que se analisa.
Presunção é, assim, uma situação que permite uma conclusão antecipada do conhecimento ou da verdade da hipótese. Ela é absoluta quando não há necessidade de qualquer demonstração mais aprofundada do que a simples, moderada e branda observação.
Por exemplo, se alguém fala “é dia”, basta observar-se o sol pela janela que a comprovação é imediata. Essa presunção de “ser dia” é absoluta, quando se tem a impressão de clareza provocada pela luz do sol em ambiente externo.
Noutro exemplo, pode-se lembrar que “o sol nasce todos os dias”. Essa presunção é absoluta, porque todos os dias, ao que consta na história do mundo, o sol nasceu. Todavia, pode haver um dia que o sol não nasça e a presunção se encerrará. Claro que nesta situação, se o mundo não acabar, terá de haver alguém para constatar isso. Como é de muito difícil constatação, a presunção do sol nascer todos os dias se torna absoluta.
Presunção relativa é aquela que existe como pressuposto de uma situação, mas cuja observação, mais cuidadosa e necessária diante de determinada situação, permite chegar à conclusão diversa.
Exemplo clássico: presunção de inocência. Parte-se do pressuposto de que todo cidadão é inocente diante da acusação– bem, isso deveria valer, pelo menos. Mas pode haver prova contrária e essa é a função do processo.
A doutrina, tão cheia de suscetibilidades quanto à ideia de presunção, preferiu mudar o nome para “estado de inocência – o que é muito pior em termos lógicos, mas isso não vem ao caso, agora.
A decisão do STJ diz que a presunção de violência no caso de estupro de menor não é absoluta, ou seja, ela não é tão clara quanto possa parecer à primeira vista. Há necessidade de uma observação mais profunda, por isso, a presunção nestes casos é relativa.
Para mudar essa perspectiva, o STJ analisou o caso concreto e confrontou a leitura do texto da lei com a leitura da realidade – modelo hermenêutico que venho pregando há uns cinco anos, pelo menos.
Em termos de aplicação da lei é um super avanço. A grande questão é a natureza do caso. Trata-se de estupro, ou seja, de relação sexual com menina de 12 anos. Isso fere a todos.
E qual o problema de fundo? A menina vivia de prostituição, uma realidade odiosa fruto das desiguais condições sociais de nosso país, que todo governante promete em campanha que vai combater.
Mas não combate nada e a menina precisa vender seu corpo para comer. E o acusado aproveitou-se da situação e tornou-se ele o predador direto, um oportunista alimentado por um modelo de governo que poderia ser denominado de “assassino difuso”, porque, aliando inércia e corrupção, condena à morte pessoas que ninguém irá conhecer.
O STJ deixou claro em sua decisão que a menina já não era mais menina, não porque fora deflorada sabe-se lá quantas vezes, mas porque sua “experiência” de vida – experiência aqui é sinônimo de sofrimento – autoriza questionar se ela teria a condição de menor cuja presunção a lei trata.
A decisão apontou também para outra questão: o que significa ser menor hoje? O critério é cronológico somente? Quando um ser humano atinge a maturidade e passa a “conhecer” a vida?
Essa questão não é simples e deveria pautar os estudos de vitimologia e criminologia, principalmente no campo da maioridade penal. Mas isto é tema para outro artigo.
Fonte: Última Instância
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