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Corte IDH busca aproximação com Brasil para reforçar proteção a direitos humanos

Ao cumprir seu 150º período ordinário de sessões, entre os dias 22 e 26 do último mês, a Corte Interamericana de Direitos Humanos experimentou uma relevante oportunidade de promover uma aproximação com o Brasil, país que tem em seu histórico sentenças condenatórias por violações de direitos fundamentais.

Com o apoio do governo e do Judiciário brasileiros, a corte se instalou na sede do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, onde fez um evento e quatro audiências de julgamento. A abertura aconteceu no Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores.

Essa foi a 31ª sessão itinerante da Corte Interamericana desde 2005. O tribunal já passou por 16 dos 25 países que assinaram a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. Três dessas sessões aconteceram no Brasil — a última delas, em 2013; a primeira, em 2006.

A Convenção Americana, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica, é o tratado internacional que funciona como base para a criação de um Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Assinada em 1969, passou a viger em 1978 e deu origem à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e ao seu órgão judicial, a Corte IDH.

À Comissão Interamericana cabe recomendar aos países soluções adequadas para proteção dos direitos humanos, verificar denúncias e coordenar investigações in loco. Ela só recebe casos em determinadas situações: esgotamento dos recursos judiciais internos sem resolução do caso; injustificada demora processual; se a legislação interna não prover remédio para solucionar o caso em análise; ou, ainda, se o caso foi de extrema gravidade.

Já a Corte IDH é o órgão que julga os casos de violação de direitos humanos dos países integrantes da Organização dos Estados Americanos (OEA) que tenham ratificado a Convenção Americana e reconhecido sua jurisdição. Estados Unidos e Canadá, por exemplo, estão no grupo dos que não ratificaram a convenção e, portanto, não se submetem ao tribunal.

Para fortalecer o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a Corte IDH precisa, em suma, ser respeitada e obedecida. E, para isso, deve ser também compreendida. É nesse contexto que se insere essa aproximação com o Brasil.

O gesto é importante também porque a Corte IDH está mais presente no dia a dia do país do que aparenta. Ela tem, atualmente, dez casos brasileiros em trâmite. Em outros dez, condenou o Brasil por permitir a violação de direitos humanos. São sentenças que prejudicam muito a imagem do país no exterior, mas também impulsionam mudanças legislativas e judiciais.

Falar a mesma língua
A necessidade de aproximação da Corte IDH com o Brasil foi citada pelo presidente do órgão, o uruguaio Ricardo Pérez Manrique, na cerimônia no Palácio do Itamaraty. Para ele, o evento marcou um momento histórico, em que o maior país da região expôs sua vontade de aprofundar os laços com o sistema interamericano de direitos humanos.

Nesse ponto, é fundamental que o órgão passe a falar a nossa língua. Por isso, o mês de agosto marcou o lançamento da versão em português do site do tribunal, além de um caderno traduzido com toda a jurisprudência envolvendo o Brasil. Documentos, sentenças, recomendações, comunicados — tudo, até então, era feito exclusivamente em espanhol.

"Nós verificamos que o Brasil, assim como outros países da região, tem períodos em que está mais próximo da corte, e outros em que está mais afastado. Pensamos que a publicação em língua portuguesa poderia trazer um bom intercâmbio e troca de informações, assim como uma reaproximação do país com a corte, principalmente sobre sua jurisprudência e suas atividades", explicou Manrique à revista eletrônica Consultor Jurídico.

A prova dessa boa relação é que o convite do Brasil para receber o período de sessões foi mantido, apesar de estarmos "em um período tão complexo de campanha eleitoral", nas palavras de Manrique. Nenhuma das audiências feitas pela Corte IDH na sede do STJ envolveu o Brasil — e nem poderia envolver, como é a praxe. Como se tratam de casos de violações de direitos humanos em que o Estado foi omisso, para a proteção das vítimas é necessário que o julgamento ocorra em território neutro.

O ministro das Relações Exteriores, Carlos França, classificou o convite do Brasil como a renovação do compromisso com a proteção internacional dos direitos humanos e o fortalecimento da corte. E Cristiane Britto, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, citou os esforços do governo brasileiro nesse sentido.

A pasta comandada por ela é a responsável por acompanhar e responder às denúncias feitas contra o Brasil na Corte IDH, bem como por cumprir as condenações. "Nosso objetivo maior é promover a cultura de respeito aos direitos humanos no Brasil e prevenir violações por meio do diálogo constante com órgãos do sistema interamericano de direitos humanos", disse a ministra.

Então presidente do STJ, o ministro Humberto Martins destacou que a presença da Corte IDH no Brasil serviria para traçar caminhos e encontrar resultados na busca por uma cidadania cada vez mais respeitada e com direitos humanos efetivados.

Dias depois dessa fala, Martins encerrou seu biênio no cargo e deu lugar à ministra Maria Thereza de Assis Moura, que no discurso de posse exaltou a contribuição da comunidade internacional para um Judiciário fortalecido. "Abrindo nossas portas a eles, aprendemos muito. Trocas de experiências internacionais são relevantíssimas em um mundo globalizado", disse ela.

Que seja exemplo
Membro da Comissão Internacional de Juristas e da Comissão Arns de Direitos Humanos, o advogado Belisário dos Santos Júnior considera de extrema importância que a Corte IDH circule pelos países sob os quais ela tem competência. E ele vê um impacto para o Brasil mesmo nos casos que não envolvem o país.

Na sede do STJ, o tribunal fez quatro audiências, em processos sobre violação de direitos de povos indígenas (Equador), discriminação por orientação sexual (Peru), restrições de acesso à Justiça (Argentina) e tortura e privação de liberdade (México). "Coisas que a gente vê aqui acontecerem a toda hora", resumiu Belisário.

Especialista em Direito Internacional, o advogado Gabriel Damasceno explica que a jurisprudência construída pela Corte IDH nesse e em outros casos aponta caminhos a serem seguidos economicamente, socialmente e politicamente pelos países, oferecendo ao Brasil a oportunidade de repensar a estrutura sócio-jurídica em que vivemos.

"Veja bem, os casos julgados se relacionam ao direito das populações indígenas ao seu território, à luta contra a lgbtfobia, ao devido processo legal e garantias penais, direitos esses violados diariamente em nosso país."

"Independentemente se o Brasil está envolvido na causa ou não, trata-se da consolidação de um sistema de precedentes e do reforço do ius commune (Direito comum) latino-americano, que tem como objetivo fazer com que tenhamos um Estado de Direito interamericano que respeite os direitos humanos e resguarde a dignidade da pessoa humana em qualquer um dos países que fazem parte da Organização dos Estados Americanos", afirmou a professora adjunta de Direito Internacional da UFU, Tatiana Cardoso Squeff.

O juiz precisa entender
"O grande desafio que temos é chegar aos juízes de piso, pois eles têm o poder que se desenrole um processo em cascata, podendo fazer valer os direitos humanos já na primeira instância, sem demora, com mais celeridade", afirmou à ConJur o presidente da Corte IDH, Ricardo Pérez Manrique.

Por isso, o tribunal aproveitou a passagem pelo Brasil para promover um curso de formação sobre jurisprudência da Corte IDH, em parceria com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).

"Pensamos que isso vai ter um efeito de difusão muito grande, principalmente nas comarcas do interior. Nesse processo, além de contar com a participação do CNJ, contamos com a OAB e também firmamos um convênio com a Defensoria Pública para fortalecer o relacionamento e difusão do trabalho, apoiando a Defensoria", falou Manrique.

O instrumento jurídico mais valioso para difundir o respeito aos direitos humanos na forma como prevê a Convenção Americana foi estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça em janeiro: a Recomendação 123/2022, na qual se prevê a utilização da jurisprudência da Corte IDH pelos magistrados brasileiros e a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas.

Controle de convencionalidade é a verificação da compatibilidade entre as normas e os atos internos de um país e os tratados internacionais dos quais ele seja signatário. É a forma que os juízes brasileiros têm de, desde logo, atacar os abusos que acabam colocando o país sob risco de responsabilização na Corte IDH. Especialistas avaliam que s trata de um instrumento valioso.

"Juízes e aplicadores do Direito, em geral, muitas vezes pensam no Brasil como uma ilha. O Brasil precisa estar situado e ajustado ao patamar de civilização e de direitos humanos que se verifica pelos julgados das cortes, principalmente da Corte Interamericana de Direitos Humanos", afirmou Belisário dos Santos Júnior.

"Essa é apenas uma ferramenta disponível", comentou Tatiana Squeff, que classifica a Recomendação 123/2022 como um guia importante para o Judiciário brasileiro. "É necessário agir em mais frentes, como na implementação das próprias sentenças que já temos contra o Brasil."

Como funciona a Corte IDH
Mesmo com toda a pompa de um tribunal internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos teve audiências abertas ao público no STJ e transmitidas por YouTube. O procedimento, ao fim e ao cabo, não difere muito do que é normalmente executado no Brasil.

As audiências são todas em espanhol, mas têm tradução simultânea para o português e outros idiomas, conforme a conveniência. São ouvidas as partes, o que pode ser feito presencialmente — quando não é possível, as oitivas são feitas por videoconferência.

Foi o caso da última audiência que ocorreu no Brasil, em que a vítima sofreu tortura do Estado mexicano. Conforme a situação, também são ouvidos peritos e especialistas, como antropólogos, biólogos, historiadores, entre outros.

Após a oitiva das partes e as considerações finais, a corte delibera em privado. Suas deliberações permanecem secretas, a menos que se decida de outra forma.

Após um período de 30 a 60 dias, decisões, juízos e opiniões da corte são anunciados em sessões públicas, sendo notificadas as partes por escrito. A leitura das sentenças geralmente ocorre durante os eventos das comissões ou do tribunal.

A Corte IDH tem duas funções. A primeira é contenciosa: ela julga denúncias de violação de direitos humanos pelos países e pode proferir medidas provisórias, em casos de extrema gravidade e urgência, quando seja necessário evitar danos irreparáveis às pessoas.

A segunda é consultiva: ela pode emitir pareceres de controle de interpretação das normas americanas de direitos humanos ou ainda analisar a compatibilidade das normas internacionais em relação a leis ou projetos em tramitação.

A Corte IDH é composta por sete juízes, sugeridos em listas e votados de forma secreta pelos estados durante a Assembleia-Geral da OEA. Eles têm mandatos de seis anos, renováveis por igual período. Os juízes que concluem esse tempo continuam participando do estudo dos casos que conheceram antes que seus mandatos expirassem.

No momento, há na composição da corte um juiz brasileiro, o advogado e colunista da ConJur Rodrigo Mudrovitsch.



Por Danilo Vital e Karen Couto
Fonte: Conjur

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