Pular para o conteúdo principal

Injúria racial, crimes contra a democracia e as ofensas a Zanin

A Lei 14.532 trouxe uma nova tipificação de injúria racial, alterando a lei que já punia o racismo (Lei 7.716/89). A lei traz a tipificação segundo a qual injuriar alguém em razão de sua raça, etnia ou procedência nacional passa a ser crime punido com pena de 2 a 5 anos, com um aumento de pena da metade, se é cometido por duas ou mais pessoas (artigo 2-A e seu parágrafo único).

Este artigo busca mostrar porque a nova lei é necessária. Por que criar um agravante quando propagado por "meio de comunicação social, de rede mundial de computadores", acrescido no artigo 20, da lei de 1989, pelo novo § 2º? E outro agravante para o crime quando cometido em "locais destinados a prática desportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público" (§ 2º-A)?

Longe do discurso punitivista, sabendo que o Direito Penal sozinho não resolve as questões sociais, e que em conjunto com os efeitos econômicos dessa seara devem repercutir consequências cíveis, não é possível deixar de ver que as sanções legais são importantes para ajudar a sociedade em determinadas mudanças.

Tenho repetido que a proibição de fumar em locais fechados ajudou a formar uma consciência em relação ao cigarro. E quando isso ocorreu, falavam na ofensa à "liberdade de fumar". O mesmo ocorreu em relação à obrigação do uso de cinto de segurança e capacete, contra a qual se falava em "liberdade". E se esquece que alguém acidentado vai parar na rede de hospitais públicos gastando verbas que pertencem a todos. Nessa esteira, podemos verificar o fato agravado de quem invoca o "direito de não se vacinar", como se fosse "liberdade" o fato de se constituir agente propagador da doença e ainda gastar verbas do sistema de saúde.

Portanto, a nova lei, ao tipificar e agravar penas, tenta retirar a possibilidade de suspensão condicional do processo (permitido aos crimes com penas mínimas de 1ano ou menos, conforme artigo 89, Lei 9.099/95), mas continua possível pela Lei 13.694/20, no acordo de não persecução penal, já que a pena mínima é inferior a 4 anos, e igualmente admite pena alternativa, de restrição a direitos, se aplicada não acima de 4 anos, o agente não for reincidente em crime doloso, e a culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do agente indicarem que a substituição seja possível, na forma do artigo 44 do CP.

A lei anterior já trazia uma importante consequência da condenação, que é "a perda do cargo ou função pública, para o servidor público, e a suspensão do funcionamento do estabelecimento particular por prazo não superior a três meses" (Artigo 16,da Lei 7.716/89).

É fundamental, ainda, tratarmos dos crimes contra o Estado Democrático de Direito neste contexto histórico, além da terrível agressão que sofreu o advogado Cristiano Zanin, que foi o principal responsável pela defesa do presidente Lula. Agressão que teve rápida manifestação de apoio de várias entidades como a OAB Federal, OAB-RJ, o IAB Nacional e entidades como a ABJD, Sacerj, Abracrim e o grupo Prerrogativas.

Os crimes de racismo e injúria racial se procedem por ação penal pública incondicionada. Ou seja, o Ministério Público tem o dever de agir independentemente de representação ou mesmo da falta de desejo da vítima. Isso porque a ofensa não atinge somente a vítima específica, mas toda a sociedade, que não pode aceitar tal comportamento.

Da mesma forma, a ofensa a Zanin não foi somente a ele. Todos os cidadãos foram ofendidos e, em especial, todos os advogados. A ofensa foi também a mim! O advogado exerce um múnus público (Artigo 2º, § 2º Lei 8.906/94) e "no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social" (§ 1º).

A ofensa que sofreu o advogado está inscrita no artigo 140 do Código Penal como injúria, agravada pelo fato de ter sido divulgada na rede social (§ 2º. Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena) saindo a pena de 1 a 6 meses para, portanto, 3 a 18 meses.

Evidente que é possível, ainda, que se constitua o crime de violência política do artigo 359-P "Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional", cuja pena vai de 3 a 6 meses, com a problemática de se interpretar o título do capítulo, já que está inscrito "no processo eleitoral". E pode ser inscrito como uma continuidade delitiva da tentativa de golpe de Estado, que teve seu cume no dia 8 de janeiro, mas se encontra em andamento desde muito antes do processo eleitoral, e continua em andamento, incluindo a campanha permanente das fake news pelas milícias digitais, o que poderia gerar a acusação em coautoria do artigo 359-M do Código Penal.

Assim, é fundamental a busca por legislações seguras que deem conta de reprimir tais atitudes. Escrevi sobre isso na ConJur quando do assassinato do guarda civil Marcelo Arruda e voltei ao assunto recentemente em Aviltamento e terrorismo semântico e jurídico.

A tipificação aos crimes de ódio e até a Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/16) ficaram ligadas a "xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião". Esquecemos as questões políticas. Não podemos continuar admitindo essa escalada de injúrias, calúnias e difamações por razões políticas, nem podemos tratar de casos isolados sem entender que estão todos conectados com um ataque a democracia.

A sugestão parece evidente. Os crimes contra o Estado Democrático de Direito devem ter como consequência evidente a perda de cargos públicos e a impossibilidade de participar de concursos. Os crimes de ódio precisam ter como consequência a perda de cargo dos crimes de injúria racial. E ainda incluir como previsão criminosa a intolerância política. É preciso, também, vetar a possibilidade de suspensão condicional de processo e acordo de não persecução penal nos crimes de ódio e contra a democracia.

Quanto às ofensas a todos nós na pessoa do advogado Zanin, o artigo 141 prevê, como agravante, o cometimento contra o presidente da República, mas também contra "funcionário público, em razão de sua função", fora presidentes da Câmara, Senado e STF. Esses crimes se procedem somente mediante queixa e no caso dos funcionários públicos mediante representação.

O advogado, eleito pela Constituição no seu artigo 133 como essencial à justiça, precisa ter igualado nesse artigo a mesma estatura dos funcionários públicos (!) quando ofendido em razão de sua função, podendo representar e sendo agravante. Sendo funcionário público, o ofensor precisa perder o cargo.

Mas em todo e qualquer caso, sendo a razão da ofensa a intolerância política, o crime deve seguir a mesma lógica do racismo e da injúria racial, no sentido de ser ação pública incondicionada.

O desagravo não é só em relação do advogado, que foi coroado na sua atuação em defesa do presidente Lula com a concessão da ordem de Habeas Corpus de suspeição do não-juiz Sergio Moro, mas um desagravo à advocacia e à cidadania. Esse desagravo, que já se iniciou e também não depende de pedido, de representação ou aceitação, já foi aprovado pelo Conselho Federal da OAB, mas é importante a mudarmos a lei! Sobral dizia que justiça não se agradece, se aceita. Porque ela é uma forma de se restabelecimento.


Por Fernando Augusto Fernandes
Fonte: Conjur

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Justiça Militar pode decretar perda de posto e patente por qualquer tipo de crime

A Justiça Militar, onde houver, ou o Tribunal de Justiça são competentes para decidir sobre a perda do posto e da patente ou da graduação da praça militar em casos de oficiais com sentença condenatória, independentemente da natureza do crime cometido.  O entendimento é do Supremo Tribunal Federal. O julgamento do plenário virtual, que tem repercussão geral reconhecida (Tema 1.200) ocorreu de 16 a 23 de junho. O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, foi acompanhado por todos os demais integrantes da corte.  "Nada obsta ao Tribunal de Justiça Militar Estadual, após o trânsito em julgado da ação penal condenatória e por meio de procedimento específico, que examine a conduta do militar e declare a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças como sanção secundária decorrente da condenação à luz do sistema de valores e do código de ética militares", disse Alexandre em seu voto.  O tribunal fixou a seguinte tese: 1) A perda da graduação da praça pode

STJ vai reanalisar posição sobre salvo-conduto para produzir óleo de maconha

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça vai se debruçar sobre a necessidade de alterar a  recente posição  das turmas criminais da corte que tem assegurado a pessoas enfermas a possibilidade de plantar maconha e produzir óleo canabidiol em suas próprias casas. Essa posição foi construída pelo tribunal ao longo do ano passado. Em junho, a  6ª Turma  abriu as portas para a concessão de salvo-conduto em favor de pacientes que, em tese, poderiam ser processados por tráfico de drogas. A 5ª Turma  unificou a jurisprudência  em novembro. Em sessão da 5ª Turma nesta terça-feira (20/6), o ministro Messod Azulay, que não participou da formação desses precedentes porque só tomou posse no cargo em dezembro de 2022, propôs uma revisão da posição para tornar inviável a concessão de salvo-conduto. A proposta foi acompanhada pelo desembargador João Batista Moreira, que também não integrava o colegiado até fevereiro deste ano, quando foi convocado junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região para

Goiânia: Anulação de Casamento - Esposa Grávida e Marido Virgem!!

Marido virgem anula casamento com a mulher grávida A juíza Sirlei Martins da Costa, da 2ª Vara de Família e Sucessões de Goiânia, julgou procedente o pedido de anulação de casamento realizado por um rapaz recém-casado. O autor da ação alega que, embora não mantivesse relações sexuais com a então noiva, descobriu, durante a lua-de-mel, que a esposa estava grávida. Citada na ação, a esposa contestou a alegação do marido. Durante a audiência, porém, reconheceu os fatos, dizendo que, durante o namoro, era seguidora de uma igreja evangélica. Disse que, com base em sua crença religiosa, convenceu o noivo de que não podia manter relações com ele antes do casamento. Ainda de acordo com a mulher, ela casou-se grávida, mas só descobriu a gravidez durante a lua-de-mel, e assumiu que o marido não podia ser o pai. Para a juíza, o depoimento pessoal da mulher é prova da existência de um dos requisitos para a anulação do casamento. A juíza determinou a expedição de documentos necessários para que