A Suprema Corte dos Estados Unidos julgará um caso paradigmático — Gonzalez v. Google [1] — que trata da imunidade a processos concedida às plataformas pela Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações (de 1996), isso em relação à responsabilidade sobre o conteúdo nelas postado por terceiros. A ação foi ajuizada por parentes de uma das vítimas de atentado terrorista ocorrido em Paris, no ano de 2015, tendo por fundamento a acusação de que o Google, dono do YouTube, incentiva o recrutamento para o terrorismo ao recomendar conteúdo deste tipo para usuários diversos.
Paralelamente, em ofício datado de setembro de 2020 [2], dirigido ao presidente do Senado dos Estados Unidos, o Departamento de Justiça, por seu procurador-geral, explicou os motivos de proposta para modernizar e esclarecer a imunidade prevista na Seção 230. Na ocasião relembrou que antes de 1996 as plataformas respondiam por todo o conteúdo quando decidiam atuar na moderação. Não realizando a atividade deixavam de ser responsabilizadas, mas abriam as portas para que fossem invadidas por conteúdo nocivo.
A Procuradoria sustentou que a imunidade da Seção 230 aumentou a segurança jurídica e promoveu a inovação no ambiente digital, mas ressaltou que de 1996 para cá o ambiente mudou extraordinariamente. Nesta linha o ofício foi crítico à postura das plataformas que hoje se tornaram gigantes e expandiram a interpretação da Seção 230, evocando a imunidade para alcançar, inclusive, situações nas quais sabiam que seus serviços estavam sendo utilizados para a prática de crimes.
Sem entrar no mérito do problema, a nota dos fatos é interessante para demonstrar que a questão gera mal-estar tanto lá como aqui, já que no Brasil as plataformas também são protegidas, para cá, pelo Marco Civil da Internet, proteção limitada à responsabilidade civil [3], mas que na prática parece se alargar para outras categorias.
Os eventos ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023, são uma amostra de como a livre circulação do discurso de ódio extremista, sob a chancela da liberdade de expressão, pode sair das mídias digitais e se converter em ações práticas de violência, depredação, vandalismo e até em atentados, como o que se frustrou e pretendia explodir um caminhão tanque nas imediações do aeroporto internacional do DF; por razões como essas é preciso falar em regulação das plataformas e mídias sociais.
O tema é espinhoso, pois toca nos limites da liberdade de expressão, que é um dos direitos mais fundamentais da existência humana em um Estado Democrático de Direito, garantia prevista na Constituição Federal, no artigo 5º, IV e IX, na Declaração Universal de Direitos Humanos [4] e em outros tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Mas a liberdade de expressão, aliás, como qualquer direito, pode ser exercida de forma abusiva, de modo a agredir direitos de terceiros, e pode até constituir crime, vide exemplo do racismo; e se nestes contextos as plataformas recomendam ou impulsionam conteúdo lesivo, elas estão deliberadamente colaborando para agravar o dano ou a fomentar delitos.
Neste contexto é importante lembrar que a mesma constituição que garante a liberdade de expressão, também preserva a liberdade de consciência, de convicção filosófica ou política, resguarda a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, a educação, a saúde, a liberdade de locomoção e a liberdade de associação (vedada a de caráter paramilitar), só para ficar com alguns direitos fundamentais que podem colidir com a liberdade de expressão, a depender da forma de sua utilização e das consequências que a disseminação de convicções e teorias lesivas pode disparar na coletividade.
Acresce-se que no contexto individual, no campo cível, a agressão à honra e à imagem determina reação reparatória — ex post — artigo 5º, incisos V e X da Constituição Federal. Portanto, em primeira análise, a censura prévia de conteúdos não seria uma solução viável.
Por outro lado, pelo manifesto interesse público, o Estado não pode deixar de impor limites e responsabilidades a toda e qualquer atividade que tenha repercussões especialmente drásticas no mercado, na sociedade e na vida das pessoas. É necessária uma regulação ex ante em algumas hipóteses.
Além disso, o preceito que garante a liberdade de expressão veda o anonimato (artigo 5º, IV), o que é comum no ambiente virtual.
Assim, tecnicamente a perspectiva jurídica da responsabilidade tem três faces distintas e independentes, a civil, a administrativa e a penal. O Estado-Juiz, no âmbito cível, tem a função de mediar e resolver conflitos entre concidadãos, mas quando exerce a função polícia administrativa e de segurança pública, para responder adequadamente às demandas sociais, é preciso, além de reagir, prevenir infrações e crimes, logo pode e deve condicionar mercados e estabelecer limites em direitos dos administrados, de forma razoável e motivada.
Neste campo a prática regulatória precisa ser analítica e transversal para alcançar outros princípios constitucionais afetados, realizando um correto juízo de ponderação para prestigiar o de maior valor jurídico. E na elaboração dos standards para uma possível solução regulatória, o Estado precisa considerar a prévia participação pública e prezar pela mínima intervenção estatal, como define a Lei 13.874/2019 (artigo 2º, III), já que também se está a tratar de interferência em atividades econômicas, mas ao mesmo tempo o regulador deve interditar o ilícito e o dano difuso e coletivo.
Enfim, a censura em sentido lato é deletéria para o equilíbrio social, com potencial, inclusive, de precipitar-se contra o princípio da isonomia, uma vez que seria possível fazer ilações sobre as reais motivações acerca do impedimento quanto a exposição de determinadas opiniões enquanto outras foram e são permitidas.
Por outro lado, isso não quer dizer que não se possa regular as plataformas e nesse processo estabelecer condicionamentos de aplicação geral em relação ao alcance de considerações que se sabe mentirosas, distorcidas ou criminosas e que tenham potencial de infligir dano social.
Explico. Não sendo crime de mera conduta, o indivíduo tem todo o direito de se expressar com opiniões das mais diversas, tais como antivax, defendendo a ditadura e reclamando que imposto é roubo, mas não pode pretender que esse conteúdo opinativo seja impulsionado, recomendado, viralizado e monetizado, pois por premissa deve ser moderado, já que a prática em larga escala de qualquer destas hipóteses incentivadas pelo discurso determinaria quebra da legalidade, ofenderia o direito de terceiros, posto que representariam crime ou atos atentatórios a estabilidade social, como infração de medida sanitária preventiva, abolição do Estado Democrático de Direito e desobediência civil, e a liberdade de expressão não altera estes fatos.
Mecanismos de denúncia e moderação, especialmente a humana, mais efetivos, cláusulas padrão e obrigatórias em termos de uso e uma autoridade que possa mediar e arbitrar casos conflituosos de forma rápida e sem custos de transação relevantes, seriam extremamente úteis. Assim se reservaria o judiciário para os interesses individuais reparatórios e para as questões realmente graves e necessárias.
Finalmente, há notícia de que o Ministério da Justiça apresentará uma proposta de lei para regular as plataformas digitais, mas que ficaria restrita à esfera criminal. Assim, resta ao Supremo Tribunal Federal determinar se o artigo 19 do Marco Civil da Internet é ou não inconstitucional (Tema 987, pendente de julgamento). No fim, pode-se dizer que o momento é profícuo para encaminhar um projeto de uma agência reguladora abrangente para o setor de comunicações, com competência para telecomunicações, OTTs, SVAs, plataformas e mídias sociais, o que fecharia o ciclo de responsabilidade com a administrativa cuja ausência ainda é sentida.
[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-17/google-suprema-corte-derrota-arruinar-internet. Acesso em 18/1/2023.
[2] Disponível em: https://www.justice.gov/file/1319346/download. Acesso em 17/01/2023.
[3] BRASIL. Lei 12.965/2014:
Art. 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
[4] UNICEF. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em 18/1/2023.
Artigo 19 — Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
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