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Nem antes, nem depois: apontamentos sobre a relação médica e as redes sociais

Há algum tempo vem se difundindo, nas redes sociais, a prática de uma técnica de publicidade comparativa denominada de "antes e depois". Nela comparam-se duas imagens com a finalidade de demonstração das mudanças obtidas com determinado produto ou serviço.

Embora pareça uma forma bastante transparente de exposição da eficácia do produto ou serviço, ela, em si, também é influenciada por outros fatores como luz, ângulo, hora do dia, contraste, etc. Além disso, parte-se da confiança do consumidor de que as imagens — de fato — estão dispostas na ordem cronológica informada. Pode facilmente, então, desviar para a publicidade enganosa (falsa, omissiva ou que induza em erro, por exemplo).

O leitor deve se lembrar de que as redes sociais também são canais de publicidade, em que muito do que é exposto é filtrado e preparado com a finalidade de influenciar comportamentos e determinar consumo (ainda que de forma indireta). Daí porque é relevante, por exemplo, a iniciativa do Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar) de editar uma Guia de Publicidade para Influenciadores Digitais.

Na área da saúde talvez essa preocupação seja ainda mais relevante. Isso porque os bens tutelados relacionam-se à própria personalidade do paciente. Basta, contudo, uma pesquisa no Instagram para se notar que a técnica do "antes e depois" vem se popularizando drasticamente para certas especialidades médicas. Passaram até mesmo a existir profissionais celebridades que se dão ao luxo de exibir a técnica ("durante"), demonstrar o material biológico envolvido e explicar os benefícios do tratamento/técnica para os pacientes. Mas que mal há nisso? Bem, trata-se de uma questão regulamentada, em cada especialidade, em suas normas éticas.

Veja-se, por exemplo, o caso da odontologia. O Código de Ética Odontológica (Resolução CFO 118/2012) expressamente considera o emprego da técnica do "antes e depois" como sendo uma infração ética (artigo 44, I), equiparada às publicidades enganosa e abusiva. Tal redação remeteria assim ao tratamento dispensado, ao tema, no Código de Defesa do Consumidor. Contudo, em 2019, uma nova Resolução (CFO 196/2019) passou a autorizar as selfies e a divulgação de imagens do diagnóstico e da conclusão do tratamento. Imagens de tecidos biológicos e da realização do procedimento continuaram proibidas. Essa resolução, contudo, tem sido objeto de certa polêmica, em razão da forma como foi editada e, claro, do objeto de sua regulamentação.

Já no caso da medicina, a regulamentação é bastante mais restritiva. O CFM editou (e atualizou) norma específica (Resolução CFM 1974/2011 e 2126/2015) que estabelece os critérios da publicidade médica. Nela, expressamente, proíbem-se a selfie (artigo 13, §2º) e o "antes e depois" (artigo 13, §3º), assim como a demonstração do "antes e depois" e elogios pelos reiterados e sistemáticos dados pelos próprios pacientes (artigo 13, §4º). Além disso, o Código de Ética Médica (Resolução CFM 1931/2009) expressamente proíbe a exibição de pacientes ou de suas imagens mesmo com suas respectivas autorizações (artigo 75).

Não há, como se percebe, possibilidade de autorização. De nada valem, portanto, os termos genéricos de autorização ou consentimento frequentemente empregados nestas circunstâncias. Lembre-se, ainda, que para fins desta regulamentação, é publicidade qualquer meio de divulgação de iniciativa, com a participação ou anuência do médico (artigo 1º, Resolução CFM 1974/2011).

O risco para o profissional não é, então, apenas ético (que já seria suficiente), mas também a aplicação do tratamento dispensado pelo Código de Defesa do Consumidor ao tema (responsabilidade civil e penal), ainda que por equiparação (artigo 29 do CDC). Além disso, é entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça que é devida indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos (Súmula 403).

Por fim, advirta-se que este quadro se complica ainda mais com a Lei de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) que classifica como sensíveis os dados referentes à saúde, os genéticos e os biométricos (artigo 5º, II), dispensando tratamento especial para a obtenção do consentimento (artigo 11) e a possibilidade de aplicação de sanções administrativas em caso de infração (artigo 52).

Como se sabe, segundo a máxima econômica, não há refeição gratuita. Alguém sempre a pagará. O profissional médico deve estar, então, atento às suas opções publicitárias. Extrapolar os limites éticos não é apenas perigoso, pode ser caro. Por outro lado, o paciente deve estar ciente de que não precisa contribuir para a publicidade do médico e, que se o fizer, pode estar contribuindo para uma postura profissional não recomendada, que trará consequências para si e para os demais pacientes. Fica o alerta.


Por Fernanda Schaefer e Frederico Glitz
Fonte: Conjur

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