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Redes sociais tornam júri ainda mais vulnerável à opinião pública

Casos de tribunal do júri que despertam interesse da imprensa e mobilizam o debate público são comuns. Contudo, a quantidade de informação produzida atualmente e a polarização em torno de praticamente qualquer assunto promovida pelas redes sociais acrescentam uma nova camada de dificuldade para juízes, promotores e advogados na busca por um julgamento que respeite o devido processo legal. 

Segundo o criminalista Rodrigo Faucz, esse é um problema que muitos países democráticos têm enfrentado com o avanço e o aumento da importância das redes sociais, já que é preciso equilibrar a garantia de um julgamento justo com a publicidade de casos que geram grande comoção ou interesse.

Faucz é um dos autores de artigo publicado no último dia 3 de dezembro nesta ConJur. No texto, ele trata do caso Sheppard v. Maxwell, que fez com que muitos magistrados norte-americanos passassem a se valer das chamadas gag-rules, emitindo ordens objetivando que a imprensa se abstenha de publicar certas informações a respeito de casos em andamento e cuja inobservância é suscetível de gerar um contempt of court (conduta que implica na desobediência de uma determinação judicial ou legal e é passível de multa ou prisão).

Apesar da diferença normativa e do próprio Direito dos Estados Unidos em relação ao praticado no Brasil, o problema é comum aos dois países, já que casos midiáticos do Tribunal do Júri por aqui costumam ser marcados por nulidades posteriores ao julgamento. 

"A grande maioria dos casos são públicos. Mas apenas alguns geram interesse midiático. O problema do caso envolvendo a Flordelis, por exemplo, não foi apenas a publicidade do crime em si, mas uma campanha massiva de desconstrução e ressignificação da história dela. Fatos, aliás, inverídicos que foram criados ou aumentados para destruí-la como mulher, como mãe e religiosa. Isso porque, a partir do momento em que a pessoa perde a sua condição de 'ser humano', perde-se o pressuposto de ser um sujeito de direitos", afirma Faucz. 

Nessa linha, o réu ou a ré, passa a ser julgada por elementos inexistentes no Código de Processo Penal, mas que estão notadamente marcados no código moral popular brasileiro.

"A opinião pública ficou hipnotizada com as fake news sobre satanismo, orgias, brigas e estética. Obviamente que o tribunal do júri, composto por pessoas da comunidade, reflete o pensamento popular. Também, quero deixar claro que não acho que os juízes profissionais não seriam impactados, ou seja, não é algo que afeta apenas o julgamento popular", sustenta. 

O juiz e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Alexandre Morais da Rosa, entende que a comunidade pode e deve ser informada dos julgamentos em tramitação no Poder Judiciário. Contudo, faz uma ressalva em relação a transformação da informação em produto, já que na sua visão, a exploração ostensiva das nuances dos casos acaba transformando o crime em um produto consumido como entretenimento. 

"As séries e documentários sempre apresentam uma versão e composição, motivo pelo qual, ainda que se esforcem para apresentação dos fatos, tendem à parcialidade. Por isso, a construção do imaginário opera pelo maniqueísmo do bandido e do mocinho", explica. 

Morais da Rosa ainda explica que muitas vezes o tempo da mídia não é o tempo do processo. Isto é, a busca por conclusões rápidas e definitivas é incompatível com a construção do caso penal a partir do contraditório. "Daí a verdade fast-food sobrepõe-se ao devido processo legal. Diferencia-se, há muito, o "julgamento com a mídia", em que a cobertura se orienta à descrição dos eventos processuais, inclusive com a participação dos envolvidos, do "julgamento pela mídia", no qual sem contraditório, nem conhecimento das evidências coletadas, em geral, oportunistas atribuem valoração subjetiva, condenando ou absolvendo pessoas que não foram julgadas", afirma.

Espetacularização processual
O advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciências Criminais da PUC-RS, Aury Lopes Jr., por sua vez, diz acreditar que o desafio de garantir um processo justo em casos do tribunal do júri é perene. 

"Precisamos estabelecer uma forma de equilíbrio nisso. Não podemos continuar promovendo um circo midiático que julga antecipadamente as pessoas antes mesmo dela ser condenada. É um linchamento público que afeta o processo judicial. Essa contaminação é ainda mais decisiva em julgamento por leigos, como é o caso do tribunal do júri", afirma. 

Ele defende a criação de filtros democráticos em casos midiáticos. "A liberdade de imprensa não pode ser absoluta. Por exemplo, não se deveria publicar nome completo antes de um julgamento definitivo e entrar em grandes detalhes processuais. O julgamento tem que ser público, mas existe uma diferença entre ter um julgamento transparente, público e acessível às pessoas e um bizarro espetáculo midiático." 

Faucz diz acreditar que a mitigação do poder de influência da mídia frente aos jurados em casos que despertam o interesse público passa por adotar alguns instrumentos de outros sistemas de Justiça no modelo brasileiro.

"Primeiro é uma atuação democrática por parte do sistema de justiça, afastando do processo os elementos e provas que não são relacionados ao crime em si. Segundo, o juiz deveria instruir os jurados a decidirem exclusivamente levando em conta as provas apresentadas na sessão. Em terceiro, o juiz precisa informar o Conselho de Sentença sobre os direitos e garantias constitucionais, como a presunção de inocência, o ônus da prova e o corolário do in dubio pro reo, que são vetores de orientação da tomada de decisão em um Estado de Direito", explica.

O advogado também entende que os jurados deveriam deliberar e chegar a uma decisão consensual e unânime, já que a revelação explícita de dúvida do conselho de sentença mostra que a acusação não conseguiu provar definitivamente a culpa do réu para justificar a  condenação.

"Mas talvez o principal é de precisarmos de ferramentas jurídicas que impeçam a divulgação de informações unilaterais e espetaculosas sobre casos que ainda não foram julgados. Ao meu ver, o princípio da liberdade de imprensa deve ser interpretado com razoabilidade quando estiver em confronto com os princípios do devido processo legal, presunção de inocência e plenitude de defesa", afirma.

Imprensa como parte do júri
Na contramão da opinião majoritária entre os especialistas consultados, o criminalista Mauro Otávio Nacif rejeita qualquer importação de dispositivos que possam limitar a atuação da imprensa em casos midiáticos.

Com 78 anos de idade, mais de 50 de advocacia e mais de mil atuações no Tribunal do Júri, Nacif diz que a imprensa faz parte do júri. "A defesa tem que usar a pressão midiática a seu favor. Se não deu para absolver o réu é um problema jurídico. A imprensa tem o direito de divulgar e não prejudica o réu", afirma. 

Segundo Nacif, a demonização dos acusados pela imprensa e o debate público exigem uma atuação firme do advogado de defesa. "O criminalista não tem que ter medo de falar com a imprensa em casos midiáticos e nem de desagradar clientes por conta da exposição. Ele defende seu cliente não apenas no tribunal, mas perante à opinião pública também. A imprensa tem que ser encarada como parte do tribunal do júri", afirma. 

Entre as mil atuações no tribunal do júri de Nacif, um dos casos mais famosos foi o julgamento de Suzane von Richthofen, acusada de planejar o assassinato dos país. Durante o caso, Nacif atuou exatamente da maneira como prega. Nunca se furtou a falar com a imprensa, concedeu entrevistas coletivas e fez de tudo para absolver a sua cliente. Suzane acabou sendo condenada por um voto, mas a sua atuação é lembrada até hoje por muitos criminalistas. 

Como exemplo de caso em que a defesa conseguiu usar o espaço gerado na mídia de maneira positiva para o cliente, Nacif aponta o da advogada Carla Cepollina, que foi absolvida da acusação de matar seu namorado, o coronel da reserva da Polícia Militar e deputado estadual Ubiratan Guimarães.

Ubiratan ficou conhecido por ter sido o comandante da tropa da Polícia Militar que invadiu o presídio do Carandiru, em São Paulo, em 1992, para reprimir uma rebelião. A operação resultou na morte de 111 presos. 

Cepollina era acusada de homicídio duplamente qualificado (motivo fútil e sem chance de defesa). Segundo o Ministério Público, ela matou o namorado com um tiro no abdome disparado por uma das armas da própria vítima — um revólver calibre 38 que jamais foi encontrado.

Nacif lembra que a mídia e o debate público estavam inicialmente demonizando a acusada, mas a defesa conseguiu reverter a situação e deixar claro que não havia prova direta contra ela, nenhuma testemunha viu o momento do disparo e ela negava ter matado o coronel Ubiratan Guimarães, em 2006. 

Já o criminalista Mário de Oliveira Filho diz que o critério de julgamento das pessoas e dos jurados passa pela imprensa. "Esses julgamentos que mobilizam a opinião pública em casos assim depende da habilidade do advogado. Temos casos em que a imprensa trucidou o acusado, mas o defensor conseguiu aliar conhecimento técnico com a parte retórica e conseguiu a absolvição", diz. 

O especialista explica que em casos midiáticos o principal problema é lidar com o conjunto probatório formado pela imprensa e opinião pública e aquilo que é fato e está no processo. "Isso demanda a habilidade do advogado para defender o que está nos autos e não aquilo que está nas páginas dos jornais", exalta. 

Nulidades
Um outro ponto comum em casos de apelo midiático é que eles muitas vezes acabam anulados por instâncias superiores. Um dos casos recentes foi o da boate Kiss. Ao fim do julgamento, Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Londero Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão foram condenados a penas de reclusão de 22 anos e seis meses (Elissandro), 19 anos e seis meses (Mauro) e 18 anos (Marcelo e Luciano).

O juiz estava disposto a determinar que os réus deveriam começar a cumprir a pena imediatamente. A defesa de um dos acusados informou que o TJ-RS já havia concedido uma medida liminar para que o seu representado continuasse em liberdade — como esteve durante todo o processo — até que houvesse uma decisão definitiva.

O MP recorreu e o ministro Luiz Fux, então presidente do Supremo Tribunal Federal, concedeu medida cautelar em suspensão de liminar para derrubar a decisão do desembargador José Manuel Martinez Lucas, do TJ-RS, que deferiu liminar em Habeas Corpus para impedir o juiz de primeiro grau de determinar a prisão imediata dos quatro acusados. 

Especialistas ouvidos pela ConJur afirmaram, na época, que a decisão do presidente do Supremo era ilegal e inconstitucional. Isso porque a suspensão de liminar não pode ser usada para anular HC, e a decisão teria violado a presunção de inocência.

No fim das contas, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul anulou o júri que condenou quatro pessoas envolvidas na tragédia da boate Kiss. 

A decisão foi fundamentada por nulidades acolhidas pelos desembargadores, entre elas, a falta de igualdade de condições entre defesa e acusação durante o processo. Com a nulidade do julgamento, a decisão do ministro Fux, que era fundamentada no julgamento, acabou perdendo o objeto e os réus tiveram a prisão revogada. Esse é, na opinião dos especialistas consultados, uma dos casos mais emblemáticos de como o apelo midiático pode contaminar um julgamento no Tribunal do Júri.

Vacina para influência da mídia
O jurista Lenio Streck diz que o tribunal do júri é o ponto mais sensível do Judiciário quando falamos na relação "opinião público e influência nos resultados". O  colunista da ConJur explica que os jurados não possuem a garantia que os juízes têm. São extremamente vulneráveis.

"São vulneráveis em dois níveis: nada lhes garante segurança e são mais suscetíveis à opinião midiática. Porque todos os casos, quando vão a julgamento, já receberam o veredicto das redes sociais, o novo tribunal da moral do século 21", define.  

Streck acredita que não é possível simplesmente dizer aos jurados: "os senhores esqueçam tudo o que sabem e ouviram sobre esse caso. Também classifica o caso da boite Kiss como uma 'crônica de um resultado anunciado'".

"Como não podemos controlar as redes e nem as mídias, só nos resta fazer um controle sobre quem decide. Esse controle pode ser feito a partir de exigência de fundamentação de decisões. Sei que no júri isso não existe. O jurado decide por íntima convicção. Pois está errado. Temos de mudar isso. Há muito que digo isso", sustenta.

Ele defende uma mudança estrutural no tribunal do júri, fazendo com que os jurados passem a fundamentar. "Ou isso, ou dependeremos sempre da opinião pessoal do jurado. Mas qual será a opinião pessoal? E se a opinião pessoal dele for a que está 'emprenhada' pelas neocavernas e pelo tribunal da moral do século 21, as ilimitadas e sem controle redes sociais? Fundamentação: eis a palavra-chave", resume.



Por Rafa Santos
Fonte: Conjur

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