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Teses firmadas em HC são desafio à cultura de precedentes na seara penal

O uso desenfreado do Habeas Corpus pelos advogados brasileiros, dentro de um sistema judicial caótico, tem transformado a dinâmica processual penal a ponto de levar à indagação: nesse cenário, como fazer a construção dos precedentes qualificados em matéria criminal?

Essa complexidade foi debatida por especialistas no assunto durante o IV Encontro Nacional de Precedentes Qualificados, organizado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em Brasília, na semana passada.

Há uma condição sistêmica que favorece o uso do HC no Brasil. Com uma Justiça morosa e atolada de casos, o remédio heroico oferece uma análise rápida e eficiente não apenas contra a ameaça ao direito de ir e vir do réu, mas também contra eventuais ilegalidades praticadas por autoridades.

O problema é que o Habeas Corpus tem efeito limitado: não permite a produção de provas, nem a incursão no mérito da ação penal atacada. Com isso, não pode ser usado como acórdão paradigma para interposição de recurso especial (STJ) ou recurso extraordinário (STF).

Quando essas cortes estabelecem posições em HC, essas posições não podem ser usadas para uniformizar jurisprudência, não são oponíveis em embargos de divergência e não podem ser afetadas sob o rito dos recursos repetitivos no STJ, por exemplo.

Esse problema foi exposto pela advogada e professora Danyelle Galvão em um dos painéis do evento sediado pelo Supremo. "Cabe reclamação, por exemplo, em um caso individual que contrarie jurisprudência fixada pelo STJ em Habeas Corpus?", indagou ela.

Presidente do painel, o ministro Rogerio Schietti, do STJ, defendeu não ser mais possível manter o entendimento de que HC não pode ser manejado em substituição a outros recursos. "Se, em vez de interpor um recurso especial, a defesa prefere uma ação mais direta e rápida, é uma opção", avaliou ele.

"Se déssemos ao Habeas Corpus um status similar ao de um recurso especial, poderíamos construir um entendimento de que ele também forma precedentes qualificados, com o mesmo efeito vinculante de um recurso repetitivo. É questão de construirmos uma normatização que corresponda à evolução e importância desse remédio heroico", continuou o ministro.

Uso irrestrito
A restrição do uso e do cabimento do HC é não apenas controversa, mas também objeto de grande resistência. Apesar dos exageros, todas as tentativas de limitar sua utilização foram refutadas ou, o que é ainda pior, tornaram-se tiros que saíram pela culatra.

A mais relevante delas foi a ideia de não conhecer de Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário, inaugurada na 1ª Turma do STF em 2012, com a alegação de que a prática configura tentativa de saltar instâncias. Seu criador, o ministro hoje aposentado Marco Aurélio, depois diria ao Anuário da Justiça que "se arrependimento matasse, eu estaria morto".

Essa posição é hoje uma divergência inconciliável na 3ª Seção do STJ. Fato é que, conhecendo ou não dos HCs, os dez ministros do colegiado continuam se debruçando diariamente sobre dezenas de pedidos. Cada um deles chega a receber 40 Habeas Corpus por dia, o que tem gerado críticas e apelos públicos.

Ainda assim, alguns de seus principais julgados recentes fixaram teses em sede de Habeas Corpus: casos sobre invasão de domicílio sem autorização judicialreconhecimento pessoal por foto; veto ao regime fechado para condenados por tráfico privilegiado; efeitos da quantidade de droga apreendida na dosimetria da pena; e salvo-conduto para plantar maconha medicinal são alguns exemplos.

Segundo Danyelle Galvão, isso causa até uma dificuldade de publicização dessas teses. Os precedentes qualificados são elencados e divulgados pelos tribunais em julgados de recursos repetitivos, incidentes de resolução de demandas repetitivas e incidentes de assunção de competência, entre outros. Mas não de Habeas Corpus.

Paradoxo
Para o constitucionalista Lenio Streck, toda decisão em Habeas Corpus, quando constitucionalmente adequada, gera precedente. Isto é, gera um pronunciamento fundamentado do qual é possível extrair razões de decidir a serem aplicadas por outros tribunais em casos futuros, criando um padrão a ser seguido.

O problema, explica ele, é que, no Brasil, precedentes qualificados são tomados como teses abstratas criadas para o futuro. Assim, não é possível construí-las a partir de Habeas Corpus. "Esse é o paradoxo da falta de uma cultura de precedentes, que, com as devidas adaptações, vai servir para qualquer ramo do Direito. Inclusive o Direito Penal."

O constitucionalista usa um exemplo do Direito comparado para explicar a ideia: a "Doutrina Brady", segundo a qual os promotores devem apresentar à defesa provas de inocência relevantes que estejam em posse do governo, não nasceu com esse nome, nem como tese abstrata, nos Estados Unidos.

Ela se originou de uma decisão da Suprema Corte do país em 1963, sobre um caso concreto, e só virou doutrina porque, paradigmática, passou a ser subsequentemente aplicada pelos tribunais a partir de seus fundamentos.

"O problema em estabelecer uma cultura de precedentes não está nesta ou naquela área, não está no fato de ser Habeas ou ADC ou o que for. O problema de criar essa cultura é que, no Brasil, até agora, não se enfrentou o problema sobre o que é um precedente. Sobre como decisões vinculam. Sobre como precedentes não nascem precedentes, não são pro futuro e abstratos. É um problema de epistemologia e de teoria do Direito, não de desenho institucional", destaca Streck.

"Honestamente? STF e STJ compraram a tese errada. Precedentalistas venderam uma ideia de teses gerais tribunalícias sob o nome de precedentes. Falo isso amiúde em meu Precedentes Judiciais e Hermenêuticas. Numa palavra: o que é isto — o precedente? Sem essa resposta, jamais será criada cultura alguma", acrescenta ele.

Repetitivos
Apesar do foco exagerado nos HCs, o ministro Joel Ilan Paciornik destacou e exemplificou, em sua palestra, como a 3ª Seção tem ampliado o julgamento de recursos repetitivos. "É a oportunidade de vislumbrar o STJ cumprindo sua verdadeira função", comemorou ele.

A revista eletrônica Consultor Jurídico, inclusive, mostrou recentemente que, dentro da "zona de penumbra" que existe entre STJ e STF, a corte infraconstitucional optou por revisar algumas de suas teses vinculantes a partir de vários julgados não vinculantes das turmas do Supremo, com o objetivo de preservar a estabilidade da jurisprudência

Em sua fala no evento, o procurador da República Luís Felipe Schneider Kircher defendeu que os precedentes vinculantes são imprescindíveis para o processo penal brasileiro. Eles servem para esquadrinhar, dentro da moldura legal, qual interpretação deve ser obedecida por todas as instâncias.

"A função do precedente é ajudar a fechar o sistema. Claro que ele não vai fechar de maneira absoluta, ele também vai ser interpretado. Mas é um fechamento", disse. "É muito importante que os próprios tribunais sigam seus precedentes e que façam a superação de maneira excepcional e com critérios", acrescentou.

O ministro Schietti concordou, ressaltando que é muito frequente, no STJ, deparar-se com alguma posição das instâncias ordinárias contrária ao que já foi decidido pela corte. "Se a gente identifica algum distinguishing que permita dar uma ou outra interpretação, tudo bem. Se não, resta registrar sua posição e seguir a interpretação já dada."

"A tentação do juiz é sempre achar que a opinião dele é melhor. A liberdade de julgar é um bem precioso da magistratura. Em algumas ocasiões, temos de desenvolver a qualidade da humildade, de entender que sua opinião não foi considerada. Vamos nos curvar ao que os outros decidirem", disse o magistrado. "Fazemos isso no STJ tanto internamente quanto na perspectiva das decisões do Supremo."


Por Danilo Vital
Fonte: Conjur

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