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STJ reverteu 89 condenações por reconhecimento irregular em um ano

O reconhecimento de pessoas em discordância com as regras estabelecidas pelo artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) resultou em 89 absolvições ou revogações de prisão pelo Superior Tribunal de Justiça, entre 27 de outubro de 2020 e 19 de dezembro de 2021, mostrando que o descumprimento da lei na produção deste tipo prova é recorrente no país.

O levantamento foi realizado pelo gabinete do ministro Rogerio Schietti Cruz e abrange decisões julgadas pelos dez ministros que compõem a 5ª e a 6ª turmas do STJ. Conforme o estudo, 28 delas foram colegiadas e 61, monocráticas. Na grande maioria das absolvições e revogações de prisões, o reconhecimento foi apenas fotográfico e se constituiu na única pretensa prova de autoria produzida.

As decisões foram dadas nos julgamentos de Habeas Corpus (HC), recursos ordinários em Habeas Corpus (RHC), recursos especiais (REsp) e agravos em recurso especial (AREsp). Mais do que um levantamento estatístico, a pesquisa elaborada pelo gabinete de Schietti mostra situações de flagrante violação aos requisitos do artigo 226 e, consequentemente, geradoras de injustiças.

Sob a relatoria do próprio ministro Schietti, um dos casos envolve um pedido de HC de Santa Catarina. Com 1,95 metro de altura, o paciente foi reconhecido por meio de foto como sendo o autor de crime que teria sido cometido por homem com 1,70 metro, conforme pessoas o descreveram. Em juízo, as três vítimas alegaram não ter condições de reconhecer o réu, cuja prisão foi mantida mesmo sem ter qualquer outra prova contra si.

Fotografias de acusados exibidas para reconhecimento de forma isolada, sem estarem junto com outras de pessoas com características similares, demonstram que o direcionamento deste tipo de ato e o sugestionamento de vítimas e testemunhas não são práticas raras, principalmente, na fase policial. Nestas hipóteses, as fotos podem ser tanto de álbuns de delegacias como extraídas de redes sociais e aplicativos de mensagem.

Em um AREsp, cuja relatora foi a ministra Laurita Vaz, no reconhecimento fotográfico extrajudicial, a vítima identificou o autor do delito por meio da touca que ele usava no momento do crime e das tatuagens em seu braço. Porém, a ofendida declarou que o suspeito vestia blusa com mangas compridas na ocasião, "o que se mostra incompatível", conforme destacou a julgadora do STJ.

Até voz, sem perícia
Um homem virou réu em processo de extorsão mediante sequestro, em São Paulo, após ter a sua voz reconhecida em delegacia como sendo a de um dos autores do crime. A sua defesa só reverteu a situação mediante pedido de HC impetrado no STJ. Em seu voto, o relator Rogerio Schietti observou que a voz do paciente foi exibida isoladamente, sem observância, por analogia, das formalidades do artigo 226 do CPP.

Além disso, não houve perícia para confrontar a voz reconhecida com as ligações feitas pelos sequestradores durante o crime. "A gravação apresentada para a testemunha não foi preservada para viabilizar o contraditório no âmbito processual. Desponta a ausência de critérios mínimos para garantir o nível de confiabilidade racional do reconhecimento fonográfico, imprescindível para a corroboração da hipótese acusatória", frisou Schietti.

De acordo com o inciso I do artigo 226, "a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida". O inciso seguinte estabelece que "a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la".

O inciso III prevê a possibilidade de a pessoa que faz o reconhecimento não ser vista por quem é submetido ao ato, a fim de o procedimento não ser prejudicado por intimidação ou outra influência. Por fim, o inciso IV determina que o procedimento deverá constar de "auto pormenorizado", assinado pela autoridade responsável pela sua realização e por duas testemunhas presenciais.


Por Eduardo Velozo Fuccia

Fonte: ConJur 

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