O termo proibicionismo refere-se à diferenciação seletiva de legalidade versus ilegalidade de algumas drogas, independente de potencialidade lesiva e outros critérios científicos. Para as ditas drogas ilícitas o braço penal é chamado a intervir por meio das agências de persecução penal, notadamente a polícia. Esse eixo de atuação de controle estatal vem sendo hegemônico na política de drogas do Brasil e inviabiliza outros paradigmas de cuidado, como é o caso das Políticas Públicas de Saúde e Redução de Danos e de Riscos (PRDs) no uso de diversas drogas.
Opondo-se ao hospital psiquiátrico — hoje rememorados em asilos de internação de pessoas em situação de dependência de drogas, as chamadas comunidades terapêuticas — e à prisão, a redução de danos aposta no empoderamento do sujeito, que a partir da autogestão de seu corpo passa a interagir com as drogas de maneira diferente.
Existe uma firula se redução de danos é política de saúde ou movimento social. Divergências à parte, reconheço algo novo nas propostas de redução de danos, o fato de que elas apontam para outro modo de o Estado entrar em contato com a população em situação de abuso de drogas. Esse contingente humano, ao longo de toda a história brasileira, fora fundamentalmente visto como um problema legal ou policial (MISSE; VARGAS, 2010, apud RUI, 2014, p. 78).
Ao leitor menos familiarizado com a redução de danos explico que o profissional que a conduz pode ter formação ampla. Os apontamentos da redução de danos e riscos pretendem diminuir usos mais nocivos aos usuários, apostando na capacidade individual desses sujeitos gerirem seus corpos e, consequentemente, o próprio consumo de drogas. Através da distribuição de insumo como seringas, cachimbos e preservativos ou substituição de drogas (crack por maconha) esforços são focados na saúde e cuidado do usuário, sem necessariamente exigir a abstinência abrupta de determinada droga (RUI, Op, cit., p.103).
É preciso pontuar que a política de redução de danos se impôs como necessidade, a despeito do preconceito e gritaria do "vai incentivar uso de drogas". Nos anos 90, com o boom do HIV no Brasil, os riscos de contaminação e população infectada a partir do uso de drogas injetáveis eram representativos, especialmente com o uso da cocaína. O então governador de São Paulo, Mario Covas, promulgou lei que autorizava a Secretaria de Saúde a promover programas de distribuição de seringas com o objetivo de prevenir a epidemia HIV/Aids ( RUI, Op, cit., p. 74).
É preciso que se diga — e a observação empírica pode comprovar — a polícia brasileira desconhece as PRDs, como constatei em pesquisa de mestrado: "O autuado J. foi apreendido com 30 pedras de crack e um 'dolão' de maconha. J. declarou estado de dependência de drogas e que sua mãe já pagou várias dívidas demdrogas e que já foi internado em uma comunidade terapêutica e ainda hoje é acompanhado por clínica conhecida como Saravida. Junto da apreensão encontra-se uma balança de precisão. O autuado afirmou que a maconha estava sendo utilizada para 'largar o crack'. A despeito de certo estranhamento dessa afirmação por parte dos policiais presentes durante a ouvida de J., essa é uma estratégia de redução de danos adotada como forma de substituição de drogas mais pesadas por outras mais leves" (GONÇALVES, 2017, p. 102).
Somando esforços e pronunciando-me sobre o fatídico acontecimento ocorrido no carnaval de Olinda com fechamento da Escola Livre de Redução de Danos e condução de uma de suas coordenadoras à Delegacia de Polícia do mesmo município, preciso dizer que esse é mais um evento que marca o autoritarismo semeado pela condução míope da política de drogas no Brasil.
Como pesquisador e advogado, dedicado à investigação e práxis da Lei de Drogas, creio que o crime de induzimento, instigação e auxílio ao uso de drogas (artigo 33 §2° da Lei 11.343/200 cuja pena é de um a três anos, e multa de 100 a 300 dias-multa ) precisa mais uma vez passar pelo crivo da melhor interpretação constitucional.
Induzir = incutir na mente alheia a ideia do uso; Instigar= reforço ao propósito do uso e Auxiliar: concorrer materialmente para a prática do uso. Uma dogmática penal desconstitucionaliza, arraigada a uma lei ambígua e de tipicidade aberta, como é a Lei de Drogas, poderia autorizar a incriminação de redutores de danos se relegarmos o direito à saúde e ao cuidado a um locus de subalternidade no plano da saúde pública.
Se no passado, com atuação da Membra do Ministério Público Federal — doutora Deborah Duprah, via Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.274 em 2012, conseguimos entender que esse tipo não pode alcançar a livre manifestação como em atos conhecidos como Marchas da Maconha, hoje, precisamos de outro salto qualitativo e interpretativo.. Na decisão de 2012, o STF não declarou o dispositivo inconstitucional, mas deu a ele interpretação conforme a Constituição permitindo as realizações das Marchas da Maconha. Repito e reforço: hoje, é necessário que tenhamos a proteção e respeitos aos profissionais da redução de dano para que não sejam aviltados/as em sua dignidade profissional nem conduzidos às Delegacias de Polícia por exercerem seu ofício.
Reflexões retiradas da dissertação intitulada : "NA CENTRAL DA CAPITAL: Entre Drogas e o Pacto — etnografando a criminalização das drogas e a cultura policial nas metas do Pacto Pela Vida" (GONÇALVES, Cristhovão).
Comentários
Postar um comentário