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STJ: Condenar réu após pedido de absolvição do MP não viola sistema acusatório

Conforme o artigo 385 do Código de Processo Penal, o juiz pode condenar o réu ainda que o Ministério Público peça sua absolvição em alegações finais. Essa norma não foi afetada pelo pacote "anticrime" de 2019 e está em plena consonância com o sistema acusatório adotado no Brasil.

Com esse entendimento, e por maioria de votos, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso especial de um promotor de Justiça do Pará que foi condenado à pena de oito meses de reclusão em regime aberto pelo crime de concussão.

A condenação foi confirmada pelo Tribunal de Justiça paraense apesar de o membro do MP ter pedido a absolvição do réu. Ao STJ, a defesa alegou que isso não seria possível porque o artigo 385 do CPP foi revogado tacitamente pela entrada em vigor do pacote "anticrime" (Lei 13.964/2019).

A revogação tácita de lei penal ocorre quando uma norma posterior torna a anterior incompatível. No caso, o pacote "anticrime" incluiu no CPP o artigo 3º-A, que confere ao processo penal uma estrutura acusatória, vedando a atuação de ofício do magistrado.

Até então, muitas normas do CPP ainda davam um caráter inquisitorial ao processo penal brasileiro. Um exemplo era a possibilidade de o magistrado converter em preventiva a prisão em flagrante de um acusado, mesmo sem o pedido expresso do órgão acusador.

A transformação promovida pela lei de 2019 foi tamanha que esse e outros dispositivos — como o da criação do juiz das garantias — estão suspensos por decisão liminar do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal. O então presidente da corte considerou que tratam-se de normas de organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria.

Nesse contexto, a 6ª Turma acabou por afirmar que, mesmo em um sistema acusatório, o juiz preserva a liberdade de condenar alguém que o Ministério Público, apesar de ter denunciado, entende que deveria ser absolvido.

Livre para condenar
O voto vencedor foi proferido pelo ministro Rogerio Schietti, que foi acompanhado pelos ministros Antonio Saldanha Palheiro e Laurita Vaz.

Para Schietti, submeter o juiz à manifestação do MP, em vez de reforçar o sistema acusatório, terminaria por subvertê-lo: transformaria o órgão acusador em julgador, acabando com a independência funcional da magistratura.

O ministro explicou que o MP é o único titular da ação penal, mas não tem o poder de desistir dela por razões de conveniência institucional. Ou seja, quando o órgão pede a absolvição de alguém, não está abandonando a persecução penal. Permanece ali o conflito entre o interesse punitivo do Estado e a proteção da liberdade do acusado.

"Mesmo que o órgão ministerial, em alegações finais, não haja pedido a condenação do acusado, ainda assim remanesce presente a pretensão acusatória formulada no início da persecução penal — pautada pelos princípios da obrigatoriedade, da indisponibilidade e pelo caráter publicista do processo —, a qual é julgada pelo Estado-juiz, mediante seu soberano poder de dizer o direito", disse Schietti.

Em voto-vogal, a ministra Laurita Vaz acrescentou que a sistemática adotada no Brasil tem como premissa o fato de que o juiz é o destinatário da prova, por meio da qual formará sua livre convicção. "A se acolher o entendimento de que o juiz se vincula irremediavelmente à manifestação ministerial, também se violaria tal postulado, modificando-se o destinatário da prova, que passaria a ser, afinal, o Ministério Público."

E se o MP mudar de ideia?
Ficou vencido o ministro Sebastião Reis Júnior, relator da matéria. Na visão dele, não há como concluir que, após as alterações do pacote "anticrime", o artigo 385 do CPP continua aplicável. Se o magistrado não pode atuar de ofício para converter uma prisão, por maior motivo não pode condenar alguém sem o pedido do MP.

"É óbvio que, se ao longo da instrução perante a autoridade judicial se convencer o Ministério Público, titular único da ação penal, de que não existem elementos suficientes para indicar a responsabilidade do réu, não há lógica que, diante do sistema acusatório que predomina no processo penal, possa o juiz do feito decidir contra a vontade do dono da ação", defendeu ele.

O voto do ministro Schietti elencou algumas consequências problemáticas dessa posição. Uma delas é a hipótese em que o MP cometa um erro matemático banal e se manifeste, em alegações finais, pelo reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. Estaria o juiz obrigado a chancelar o cálculo errado?

E se o MP pedir a absolvição do réu no Plenário do Tribunal do Júri? Os jurados seriam obrigados a acompanhar esse pleito, a despeito da soberania dos vereditos? O juiz-presidente deveria dissolver o Conselho de Sentença?

A posição também prejudicaria a sindicabilidade dos atos dos membros do MP. Eventuais erros, ou até desvios éticos, praticados por eles não se submeteriam a controle algum: não haveria interesse em recorrer e nem espaço para remeter os autos ao órgão superior do Ministério Público.

Em vez disso, o ministro Schietti defendeu a possibilidade de o juiz condenar o réu que o MP recomendou absolver. Mas que isso seja feito de forma excepcional, com fundamentação suficiente para refutar os argumentos apresentados pela defesa e pelo órgão acusatório.

"O artigo 385 do CPP não é incompatível com o sistema acusatório entre nós adotado e não foi tacitamente derrogado pelo advento da Lei 13.964/2019, responsável por introduzir o art. 3º-A no Código de Processo Penal", concluiu ele no voto vencedor.

Clique AQUI para ler o acórdão
REsp 2.022.413


Por Danilo Vital
Fonte: Conjur

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