Segundo jurisprudências diversas do Supremo Tribunal Federal, obrigar uma universidade pública a abrir exceção em suas regras para permitir a pregação religiosa de um aluno pode ser garantia de liberdade religiosa ou uma afronta ao princípio da isonomia.
Quem aponta a oposição são especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, comentando uma decisão na qual a Justiça do Distrito Federal determinou que a Universidade de Brasília (UnB) tranque a matrícula de um aluno que deseja sair em missão religiosa até o fim de 2023. O caso foi noticiado pela ConJur no domingo (19/2).
O autor da ação integra a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias e disse que tem como dever religioso servir em missão de pregação em um lugar distante de onde mora.
A UnB, no entanto, estaria colocando empecilhos porque o aluno já trancou a universidade em outros momentos. O limite para o procedimento, disse a universidade, é de dois períodos, já atingido pelo estudante.
Ao dar decisão favorável ao estudante, o juiz Bruno Anderson da Silva, da 3ª Vara Federal do DF, disse que direitos fundamentais devem prevalecer diante dos regimentos internos das instituições. Dessa forma, a liberdade religiosa não pode ser cerceada em nome da autonomia universitária.
Especialistas ouvidos pela ConJur divergiram sobre a decisão. Também disseram que a jurisprudência não é uníssona a respeito das situações em que o Judiciário pode ou não abrir exceções para beneficiar alunos religiosos.
Na Suspensão de Segurança 2.144, julgada pelo Supremo em 2002, por exemplo, o ministro Marco Aurélio garantiu que um candidato fizesse a prova após o pôr do sol de um sábado, em horário diferente dos demais postulantes, O autor era adventista, religião que “guarda” o sábado.
Na ocasião, o ministro entendeu que os demais candidatos não seriam prejudicados, uma vez que o religioso ficaria isolado e incomunicável até o pôr do sol de sábado, quando poderia fazer a prova.
Já o ministro Gilmar Mendes decidiu em sentido inverso ao julgar, em 2009, a Suspensão de Tutela Antecipada 389. Na ocasião, um estudante judeu pediu para fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em data alternativa, uma vez que a prova caia no sábado.
Para o ministro, a designação de data alternativa viola o princípio da isonomia ao privilegiar um grupo religioso. Ele também entendeu que haveria risco à ordem pública.
"A escusa de pedir o trancamento do curso para cumprir com aquela obrigação faz parte do exercício constitucional da liberdade religiosa e se sobrepõe a uma norma regimental. Não se trata aqui, de uma afronta ao princípio da igualdade e sim da garantia do cidadão de não ser privado de seus direitos, por motivo de crença religiosa, conforme prevê o inciso VIII do artigo 5º da Carta Magna", afirma.
Assim, prossegue a constitucionalista, regimentos internos de instituições públicas e privadas devem se submeter ao “atendimento dos dispositivos constitucionais e aos diplomas legais. Existem regras de natureza regimental que são criadas por cada instituição de ensino e que não podem prevalecer em face do atendimento aos direitos fundamentais”, conclui.
Pablo Meneghel, mestre em Direito pela Universidad Europeia del Atlântico da Espanha, concorda. Segundo ele, o fato de o Brasil ser um estado laico não equivale a dizer que as preferências religiosas devem ser ignoradas. Ao contrário, afirma, o país precisa reconhecer a pluralidade das religiões e se posicionar de forma equidistante, cooperativa e respeitosa.
"O Supremo Tribunal Federal, em distintas ocasiões, atuou como defensor do dito estado laico, sem adotar qualquer espécie de comportamento antirreligioso. Ao contrário, sua postura é pró-liberdade religiosa, de crença e de culto", afirma.
Por isso, prossegue, foi "acertada" a decisão da Justiça do DF que garantiu ao estudante da UnB o direito de trancar o curso para fazer pregação religiosa.
"Ao sopesar os dispositivos constitucionais em questão (‘direito fundamental versus autonomia da universidade’) ele não apenas dá o peso adequado ao exercício da liberdade de consciência e de crença para que ele prevaleça na ‘balança da justiça’, mas reconhece a sua existência expressa em comparação a inexistência de qualquer outro dispositivo de mesma hierarquia que justifique a decisão da universidade, sem que isso signifique afastar a laicidade do Estado", diz.
"Eu e você temos o direito de crer (ou não) no que quisermos: posso acreditar que se engolir três pescoços de galos índio por dia vou purificar minha alma e assegurar meu lugar aos céus (por exemplo, digamos que eu pertença a uma religião desse jaez). Mas isso não me dá o direito, caso não tenha eu condições financeiras, de pleitear judicialmente ao Estado que me forneça um caminhão de pescoços sempre que necessitar", afirma o constitucionalista.
Ele também diz que o princípio da isonomia impede que o Judiciário abra exceções a alunos religiosos.
"Há uma coisa chamada isonomia e universalidade das decisões: por exemplo, no homeschooling, o STF decidiu que não é possível. Por quê? Porque se todos exigirem, acaba o próprio direito. As pessoas que não optaram por uma determinada crença não necessitam pagar pela felicidade dos outros."
No caso citado por Lenio, o Supremo decidiu que o ensino domiciliar não está previsto na Constituição Federal e depende de lei específica para ser permitido no Brasil. Trata-se do RE 888.815.
No primeiro julgamento, os ministros decidiram que era possível oferecer data alternativa para concurso público a quem professe impedimento por religião; no segundo, que a administração pública poderia estabelecer critérios alternativos a servidores públicos que aleguem razões religiosas para não cumprir os deveres funcionais na forma estabelecida, desde que dentro da razoabilidade.
Em ambos os casos, ficaram vencidos Dias Toffoli, Nunes Marques e Gilmar Mendes, defendendo que a administração pública não pode ficar refém das particularidades de cada um dos candidatos aos concursos. A aplicação dessa tese pode levar à inviabilização dos concursos, afetando o interesse de toda a coletividade.
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