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Conjur: Casos de Vila Cruzeiro e Genivaldo refletem problemas estruturais das polícias

A ausência de uma política nacional de integração da segurança pública no Brasil cria desigualdades profundas de efetividade policial entre os estados. O aproveitamento do conjunto normativo anterior à Constituição de 1988 dificulta a fiscalização e permite a instrumentalização das polícias. E o aparato de segurança não militarizado do Estado acaba extrapolando as próprias funções para assumir o marketing do "heroísmo", exacerbando os problemas.

Esses são, segundo especialistas ouvidos pela ConJur, os principais ingredientes do caldo que parece estar entornando nas últimas semanas, com episódios chocantes de violência policial no país — em especial a operação na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, que desobedeceu frontalmente uma decisão do Supremo Tribunal Federal, e o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, em Sergipe, após tortura com asfixia por gás.

Embora a violência policial pareça estar recrudescendo, esses episódios "isolados" se somam a uma série de outros episódios "isolados" que vêm comovendo a sociedade brasileira pelo menos nos últimos 40 anos, como lembra o coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo Glauco Carvalho.

"Nós tivemos o episódio da Casa de Detenção em 1991 (o massacre do Carandiru, que deixou 111 mortos); a chacina em Vigário Geral em 1993 (que matou 21 moradores da comunidade); ação da PM em Corumbiara, em Rondônia, que resultou na morte de crianças e dois policiais; a chacina da Candelária em 1993 (oito meninos de rua assassinados por milicianos enquanto dormiam nas escadarias da igreja); o caso da Favela Naval, em Diadema, em 1997. Evidentemente, essas ações mostram uma não conformidade do comportamento de policiais para com o que determinam a lei, a jurisprudência e os manuais internos da polícia. Faz parte, infelizmente, de um quadro de 'normalidade' dos últimos talvez 40 anos no Brasil", relembra ele.

Além disso, o quadro social no país ajuda a agravar a situação, aponta Carvalho, que também é doutor em Ciência Política pela USP. "Temos desemprego alto, inflação alta, e é sabido, pela literatura internacional, que esse tipo de situação leva ao aumento dos crimes contra o patrimônio. Isso agrava o estresse do policial, suas condições de saúde mental, e o leva, muitas vezes, a praticar condutas que talvez não praticasse em condições normais", avalia.

As operações no Rio de Janeiro, como um todo, são um caso à parte. Glauco Carvalho ressalva que a situação da cidade é incomparável com outros lugares do país. "Quando eu estive lá, em 2007, vi lança-rojões sendo atirados entre um morro e outro. Nessa operação da Vila Cruzeiro, foram apreendidos fuzis (13, segundo a polícia). Um tiro de fuzil mataria 15 pessoas enfileiradas, com uma única bala", exemplifica.

O coronel reformado da PM de São Paulo José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança Pública, faz a mesma ressalva. Segundo ele, a própria política de operações é equivocada. "Só entre 2007 e 2020, foram 289 operações policiais. Se elas funcionassem, a partir da 50ª, ou, sendo mais generoso, mesmo da centésima, não existiria mais tráfico. Com esse esquema de 'entra, bate, mata e sai', estão facilitando o retorno de armas e drogas para as comunidades".

Descentralização e desigualdade
Os dois coronéis concordam que a principal dificuldade para avaliar a eficiência policial é a disparidade de gestão entre diferentes estados do país. José Vicente destaca que os piores índices de homicídios por cem mil habitantes estão em estados da Região Nordeste.

Dois dos estados com os menores efetivos do país (ver tabela ao final do texto), São Paulo e Santa Catarina, também são os que têm os menores índices de mortes violentas em proporção às suas populações.

Glauco Carvalho atribui a eficiência da Polícia Militar, especificamente de São Paulo, ao investimento constante em equipamentos. "Faz dez anos que a polícia vem melhorando seus equipamentos; 15 anos que vem investindo em tecnologia. Investimento em equipe e em viaturas permitem um trabalho muito mais amplo de prevenção ao crime", destaca.

Já José Vicente ressalta que a PM de São Paulo leva dois anos para formar um policial. Em outros estados, a preparação dura meses. Um especialista da Microsoft com quem conversou chegou a dizer que as polícias de São Paulo e Nova York são os maiores exemplos de eficiência do mundo.

Mas os bons resultados não se refletem no restante do país. Durante o governo de Michel Temer, houve uma tentativa de centralizar a coordenação da segurança pública com a criação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), mas a iniciativa foi desorganizada e não deu resultado, conforme avalia José Vicente.

Regência retrógrada
Renato Sérgio de Lima, diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, concorda que a iniciativa de nacionalização foi tímida. A segurança continua sendo vista como responsabilidade "dos estados". E a raiz do problema, segundo ele, está no arcabouço normativo que regula o trabalho policial.

Ele explica que a Constituição inclui, no seu artigo 5º, a segurança pública como direito fundamental do cidadão. Mas o artigo 144, que trata do tema, foi quase todo reaproveitado da Constituição de 1969, da época da ditadura militar.

"O ministro Nelson Jobim, a quem eu entrevistei para um livro [Segurança Pública após 1988: história de uma construção inacabada], me contou que o tema da segurança pública foi deixado em segundo plano naquele momento de construção da Constituição. Isso fez com que o dia a dia reproduzisse o modelo de 1969: a divisão entre PM, Polícia Civil, PRF, PF, e com a ideia de segurança interna, pensando no enfrentamento de um inimigo", conta ele.

Não só a cultura dentro dessas polícias se manteve depois da Constituição, mas a atuação legal é baseada em normas anteriores. O Código Penal é de 1940; o Código de Processo Penal é de 1941, reformado em 1984; a Lei de Execução Penal, de 1984. "Toda a forma de trabalho das polícias está estruturada nos regulamentos anteriores à Constituição. E nunca se discutiu se as formas de atuação foram recepcionadas pela CF", afirma Lima.

Só recentemente, em resposta à pressão de organizações como o próprio Fórum de Segurança, é que o Ministério Público tem admitido o direito à segurança pública como sujeito a atuação e questionamento por tutela coletiva — ou seja, um problema também de Justiça, e não só de ordem.

A consequência dessa separação institucional entre os direitos do cidadão e a atuação das forças de repressão, que não foi enfrentada desde a Constituinte, é um excesso de autonomia dos órgãos de investigação e patrulhamento, o que facilita a instrumentalização das polícias pelos governos do momento.

Presidencialismo policial
Esse uso político da polícia não se restringe aos governos estaduais. Jair Bolsonaro tem capitalizado, desde o início do governo, com sua proximidade com as forças de manutenção da ordem — sejam polícias, sejam as Forças Armadas. Mas a sua influência é restrita, como afirmam unanimemente José Vicente, Glauco Carvalho e Renato Sérgio de Lima.

Mesmo assim, há muitos fatores a ser considerados. Em primeiro lugar, Carvalho destaca que uma percepção de aumento na truculência das ações policiais não pode ser atribuída a Bolsonaro. "É um quadro que vem de longe, dos últimos 40 anos", afirma.

José Vicente, que participa de diversos grupos de mensagem com policiais da ativa, afirma que iniciativas de apoio de policiais ao governo federal são raras. "Eu acho que colegas meus têm se excedido em narrativas conspiratórias de que a PM vá fechar fileiras com Bolsonaro numa eventual ruptura institucional."

Segundo ele, o dia a dia do trabalho policial é muito intenso e dinâmico, e um policial está sempre mais preocupado com o que pensa "o capitão do seu batalhão do que o capitão presidente da República".

Mas a simpatia e a aproximação são inegáveis. Bolsonaro é o primeiro presidente civil que participa ostensivamente de eventos de formatura de novos policiais, posta inúmeros vídeos nesses eventos, elogia o trabalho das forças.

O resultado dessa aproximação, que ajuda a esconder o fato de que o presidente não tem tomado iniciativas concretas para beneficiar a classe, é mais sutil. Renato Sérgio de Lima aposta que o apoio individual de policiais ao governo não vai se dar por ação, e, sim, por omissão.

"Por exemplo, se um policial militar, no dia 3 de outubro, fazendo a guarda de uma urna não reagir a um movimento mais radical de quebra de urnas sob alegação de fraude, isso vai gerar um problema seríssimo de ordem. Ele não vai ser acusado de agir contra a lei, mas o fato de ele 'não olhar' já pode comprometer as instituições".

Os comandantes sabem que precisam manter o controle. Nos atos antidemocráticos de 7 de setembro de 2021, a atuação institucional, como a resposta ao coronel Aleksander Lacerda (que tinha convocado "amigos" para o protesto e foi afastado), mostrou que não existe chancela para a manifestação política de policiais. Mas os indivíduos, ressalta Lima, são mais suscetíveis às próprias simpatias, mesmo ao discurso antidemocrático de questionar a lisura das eleições.

"Não é preciso que eles apoiem um golpe, mas simplesmente que não olhem para o que está acontecendo para viabilizar um estado de comoção, um quebra-quebra, esse movimento que sabe-se como começa e não se sabe como termina".

E a penetração do bolsonarismo nas tropas, política que Lima chama de "versão tosca do malufismo", pode estimular a ruptura institucional. Segundo ele, a PM mimetiza o padrão de hierarquia do Exército, mas é muito mais permeada pelo cotidiano e, portanto, mais vulnerável à influência política.

Conforme ressalta Lima, a Polícia Rodoviária Federal, protagonista nos últimos episódios de violência, é particularmente vulnerável a esse tipo de manipulação: "Ela é de certa forma equivalente à PM nas rodovias, mas tem grande mobilidade", afirma. Por isso, presta-se à priorização do modelo de enfrentamento que privilegia operações, "o que dificulta a fiscalização sobre a legalidade das ações efetuadas".

Ethos guerreiro
Uma outra chave para entender a situação atual do sistema de segurança pública no país é o fenômeno de militarização das polícias que não são militares no país. O movimento, ressalta Lima, é anterior a Bolsonaro; o "ethos guerreiro" sempre foi aspiracional para as forças de segurança. Mas tem se intensificado.

O aumento de perfis nas redes sociais em que policiais civis ostentam metralhadoras e fardas, registrado pela Folha de S.Paulo em dezembro de 2021; a adaptação da indumentária de guardas municipais, que não fazem parte do efetivo policial, para se aproximar da imagem de policiais militares; e a criação de destacamentos de patrulhamento ostensivo em todos os níveis de funcionamento de segurança, inclusive a Polícia Federal, podem ser incluídos no que José Vicente chama de "marketing heroico".

"No Rio de Janeiro, a Polícia Civil tem a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), contrariando a disposição constitucional. No Rio Grande do Sul também fazem policiamento ostensivo", exemplifica. "Não faz o menor sentido".

Mas, segundo ele, é possível perceber que "os barulhentos são os que vão mal" nos índices reais de segurança. "A polícia de Santa Catarina tem o GAT, mas ele não é famoso como o Bope no Rio de Janeiro. Em São Paulo existe a Rota, mas você não ouve falar de operações".

"Mas eles se aplicam em fazer aquilo que as boas polícias do mundo fazem, que é o patrulhamento rotineiro: atender brigas, disputas familiares. Na verdade, essa penetração é a verdadeira função da prevenção policial. No ano passado, a cidade de São Paulo fechou o ano com cinco mortes por 100 mil habitantes. Esse avanço se faz com policiamento discretamente distribuído pelos bairros; não é com mais força, exibicionismo militarista".

A tabela abaixo, compilada por José Vicente, mostra, lado a lado, com dados de 2018, a quantidade de habitantes por policial militar no estado (assim, quanto mais habitantes por policial, menor o efetivo proporcional) em comparação com o índice de mortes por cem mil habitantes.


Por Luiza Calegari

Fonte: Conjur

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