Inexistência Probatória: TJ-SP muda decisão e absolve motorista que havia sido condenado por tráfico
A 10ª Câmara de Direito Criminal do TJ acolheu os embargos infringentes apresentados pela defesa contra decisão de 2021 do próprio tribunal.
Na ocasião, a corte havia acolhido, por dois votos a um, recurso de apelação do Ministério Público (MP) para condenar o réu a uma pena de oito anos e quatro meses de reclusão, em regime inicial fechado, e 833 dias-multa, por tráfico de drogas. O voto vencido foi o do relator do caso, desembargador Francisco Bruno.
A decisão do novo julgamento, unânime e a favor do caminhoneiro, recupera entendimento de Bruno e da juíza de Direito Isadora Botti Bernaldo Montezano, da 1ª Vara de Osvaldo Cruz (SP), que havia absolvido o réu.
O homem foi preso no dia 3 de julho de 2020, quando dirigia um caminhão carregado com batatas, ensacadas e organizadas. A nota fiscal indicou que ele pegou o veículo no Paraná e a carga, em Presidente Prudente, no interior paulista, de onde iria levá-la até a capital.
Os tijolos de maconha foram encontrados por policiais em um fundo falso e de difícil acesso, na carroceria do caminhão. No entanto, uma série de depoimentos e evidências colocou dúvida sobre se o caminhoneiro sabia ou não da existência da droga no veículo.
Além de o caminhoneiro não ser proprietário do veículo e ter apresentado nota fiscal atestando que havia sido contratado para transportar a carga, a decisão destacou que ele não aparentou nervosismo na abordagem policial e afirmou não saber da existência do fundo falso. Lembrou ainda que os policiais não constataram atividade suspeita em seu celular.
O homem é réu primário e não tem envolvimento com crime organizado.
"Ademais, não se pode sequer reconhecer o dolo eventual, mediante a aplicação da teoria da cegueira deliberada, pois não é razoável exigir de um caminhoneiro que cheque todos os compartimentos do veículo que irá conduzir para se assegurar de que não há nenhuma carga ilícita escondida nele, sobretudo quando sequer há sombra de ilicitude (cheiro, volume, desorganização de carga)", afirmou a juíza Isadora Montezano.
Para a magistrada, exigir do réu a comprovação do modo em que saiu de casa, a realização de acompanhamento do carregamento do caminhão e a análise de toda a carroceria que aparentemente estava normal "acaba impondo ao acusado a comprovação de sua inocência e revertendo a ordem jurídica". A presunção de inocência, concluiu, "deve ser vista como regra de julgamento".
O MP alegou ainda que o caso se enquadra na "teoria da cegueira deliberada" (willful blindness, na sigla em inglês), que diz respeito ao agente que, consciente e voluntariamente, se coloca em situação de ignorância.
A 10ª Câmara Criminal do TJ-SP acolheu o recurso e reformou a sentença absolutória, condenando o réu como incurso no artigo 33 da Lei de Drogas: "Vender, comprar, produzir, guardar, transportar, importar, exportar, oferecer ou entregar para consumo, mesmo que de graça, dentre outras condutas".
A defesa, contudo, utilizou os embargos infringentes e de nulidade para recorrer da decisão. Trata-se de um tipo de recurso que pode ser apresentado contra acórdão não unânime a respeito de um réu, dirigido ao próprio tribunal que pronunciou a decisão impugnada — nesse caso, ao TJ-SP.
Com isso, foi possível mudar a decisão e manter a absolvição do réu. O relator do caso foi o desembargador Fábio Gouvêa. Em sua decisão, ele afirmou que a razão, no caso, estava com o voto vencido do tribunal, do desembargador Francisco Bruno, que havia sustentado que a teoria da cegueira deliberada não se aplica ao caso, já que o conceito não tem o objetivo de possibilitar à acusação a "desnecessidade de demonstrar a culpa do réu", mas viabilizar a condenação nos casos em que a culpa é clara, mas impossível de provar.
Bruno citou como exemplo o caso de um presidente da República que recebe presentes valiosos, "sem sequer indagar por quê, tendo praticado atos que favoreciam o ofertante".
"Mas isso não ocorre, neste caso: é perfeitamente possível, e ocorre, que traficantes prefiram uma 'mula' inconsciente, capaz de agir com naturalidade se abordada. E foi o caso, aqui; os policiais deixaram claro que a atitude do apelado foi natural e tranquila; só desconfiaram da existência da droga porque, conhecendo o tipo de carreta que a transportava, notaram a possibilidade da existência do fundo falso", afirmou o desembargador Francisco Bruno.
A existência de casos em que caminhoneiros são utilizados por organizações criminosas para o transporte de drogas e armas no Brasil já havia sido citada na decisão da juíza de primeira instância.
"Na maioria das vezes, as pessoas escolhidas como as denominadas 'mulas' são primárias, de bons antecedentes, sem passagens pela polícia ou relação com o tráfico de drogas", observou a magistrada.
"Uma decisão absolutória em primeiro grau desta magnitude dificilmente é mantida em segunda instância, ainda mais uma decisão do colegiado", analisou ele. "Certamente, um excelente precedente e jurisprudência para a advocacia criminal".
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