O silêncio do cachoeira*
O Brasil acompanhou as imagens transmitidas ao vivo e pelos noticiários do empresário Carlinhos Cachoeira, investigado por explorar jogos ilegais e comandar um vasto esquema de corrupção, envolvendo políticos e setores da administração pública. Apresentou-se silente durante duas horas, sem responder às perguntas que lhe foram formuladas e a única manifestação foi no sentido de que teria muito a dizer, mas não à Comissão Parlamentar de Inquérito que o investiga.
O direito ao silêncio é tutelado constitucionalmente ao acusado, que pode se recusar a responder às perguntas que venham incriminá-lo. Cinge-se na esfera do também preceito constitucional da ampla defesa, corolário inseparável dos direitos da personalidade, assim denominados por Pontes de Miranda.
Ao leigo passa a impressão que a postura de indiferença, de antipatia e de arrogância do depoente representa um deboche aos representantes do povo encarregados da arguição. Dá-se a impressão que com o silêncio excessivo cometeu um novo delito e o brado popular de “bandido”, “marginal”, “criminoso” começa a espocar na plateia.
Diante de tal cena, a população brasileira, aquela que não conhece a técnica jurídica, vê dinamitar e implodir o poder investigatório da CPI, justamente pelo poder conferido ao suspeito de nada responder a respeito dos fatos investigados. Inúmeras provas documentais foram juntadas para instruir a apuração e seriam objeto de questionamento no plenário, porém, ficaram sem respostas. Será que o interesse individual, pergunta o cidadão comum no exercício de sua indignação, que se preocupa em tutelar somente determinada pessoa investigada supera o direito coletivo de se saber a verdade a respeito dos fatos perquiridos? A verdade não soa mais alto e pelo princípio da proporcionalidade não seria mais justo sacrificar o bem individualizado do que o coletivo?
E este mesmo povo, pela expectativa de alguma definição ou alguma versão que possibilitasse dar um norte para a indagação, já encerra o julgamento, condenando o silêncio do implicado. É sabido e faz parte da cultura popular que, aquele que tomou conhecimento de uma acusação e diante dela se calou, consentiu. Já que não se defendeu e teve oportunidade para tanto, o seu silêncio passa a ser incriminador. O julgamento popular é instantâneo, produz coisa julgada e se torna rapidamente imutável, sem qualquer chance de reversão.
Mas o direito ao silêncio, visto pelas lentes do Direito, ganha assento constitucional e se insere nas garantias que cercam o cidadão quando investigado ou processado. Não compreende somente a zona de intimidade do infrator, mas, também, o alargamento das fronteiras defensivas, não permitindo, desta forma, que produza provas contra si mesmo, quando é convidado a testemunhar o próprio opróbrio, como diz Tomás de Aquino.
A Carta Constitucional estende os braços para o princípio da presunção da inocência, que guarda estreita vinculação com a regra do nemo tenetur se detegere (ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo), direito assegurado nas constituições democráticas, conforme se constata da norte-americana no instituto do privilege against self-incrimination (privilégio da não autoincriminação). O exercício desse direito não pode ser visto como uma penalização, um suplício, um antídoto da liberdade consagrada. E a liberdade do cidadão somente pode ser limitada em nome de outra liberdade mais prevalente, no critério estabelecido por seres iguais e livres, com liberdade de escolha.
O silêncio pode se estender até a fase judicial quando do interrogatório do acusado e o juiz, depois de cientificá-lo do inteiro teor da acusação, irá observar que “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”. Conforme salienta Tourinho Filho, com sua incontestável sabedoria, de um modo geral “todos reconhecem ser o interrogatório meio de defesa. Sendo-o, evidente que o réu pode preferir calar-se. E o Juiz nem sequer pode tirar ilações desse silêncio contrárias ao réu, tal como disposto em lei, pois do contrário estaria neutralizando a Defesa, cerceando-a grosseiramente”.
Incumbe ao Estado, por meio de seus agentes persecutórios, demonstrar a prática de um ilícito pelos meios probatórios admissíveis nas regras jurídicas e não coagir o eventual infrator a consentir na realização de provas espúrias, prostrando-o diante de sua própria cidadania. É o aniquilamento de direitos obtidos com muito custo pela população brasileira. É a reserva que assegura ao cidadão o direito de não realizar provas contra si mesmo.
*Eudes Quintino de Oliveira Júnior ( Promotor de Justiça aposentado;
Mestre em Direito Público;
Doutor e Pós-Doutorando em Ciências da Saúde;
Reitor da Unorp)
Fonte: Atualidades do Direito
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