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Supremo impõe limites ao poder do legislador
Por Rodrigo Haidar

Duas decisões tomadas em um espaço de um ano e meio sobre a mesma lei revelaram que o Supremo Tribunal Federal não está disposto a permitir que o Congresso Nacional atropele a Constituição com a justificativa de combater a criminalidade. A mensagem é clara: o rigor da lei tem de obedecer aos parâmetros mínimos das garantias constitucionais, ou as normas cairão por terra. 

Na última quinta-feira (10/5), os ministros derrubaram, por maioria, a regra da chamada Nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) que impedia juízes de conceder liberdade provisória a presos em flagrante por tráfico de drogas. Em setembro de 2010, outra regra contida no mesmo artigo 44 da lei, que impedia a conversão de pena de prisão em restritiva de direitos, havia sido julgada inconstitucional. 

No julgamento da última quinta, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo, chegou a dizer que a proibição de que o juiz analise a possibilidade de o acusado por tráfico responder ao processo em liberdade “transgride o princípio da separação de Poderes”. Trocando em miúdos, o Parlamento não pode, por meio de lei, impedir que magistrados exerçam prerrogativas inerentes à sua função, como é o caso de avaliar se um acusado pode responder ao processo em liberdade e determinar qual é a punição mais adequada para o crime cometido por um condenado. 

No caso mais recente, por sete votos a três, os ministros julgaram inconstitucional a expressão “e liberdade provisória” contida no artigo 44 da Lei 11.343/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). De acordo com a regra, os crimes relacionados ao tráfico de drogas “são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos”. 

Apesar de a expressão se referir especificamente ao crime de tráfico de drogas, as discussões em plenário mostraram que os ministros não admitem a possibilidade de a lei vedar a concessão de liberdade sem que o juiz possa examinar o caso concreto em quaisquer crimes. 

A decisão foi tomada em pedido de Habeas Corpus impetrado pelos advogados Daniel Leon Bialski e Guilherme Pereira Gonzalez Ruiz Martins. No pedido, os advogados sustentavam que a alteração trazida pela Lei 11.464/2007, posterior à Lei de Drogas, que permitiu a liberdade provisória para crimes hediondos ou equiparados, certamente abrangeria o crime de tráfico, revogando tacitamente a vedação expressa da lei anterior. 

Os advogados juntaram ao pedido a exposição de motivos da Lei 11.464: “O Projeto pretende modificar o artigo 2º da Lei 8.072, de 1990, com objetivo de adequá-la à evolução jurisprudencial ocorrida desde sua entrada em vigor, bem como torná-la coerente com o sistema adotado pela Parte Especial do Código Penal e com os princípios gerais do Direito Penal. A proposta de alteração do inciso II do artigo 2º busca estender o direito à liberdade provisória aos condenados por esses delitos, em consonância com o entendimento que já vêm se tornando corrente nas instâncias superiores do Poder Judiciário”. 

Por essas razões, os advogados alegaram que a lei deixa claro que não se poderia obstruir ou negar a liberdade provisória para os delitos hediondos e a esses equiparados. Outro ponto fundamental para a defesa foi a alegação de que o inciso LXVI do artigo 5º da Constituição vedava unicamente aos crimes de tráfico de drogas a possibilidade de concessão da liberdade provisória mediante a atribuição de fiança, o que importaria na conclusão de que o agente não poderia substituir a sua liberdade por um bem de valor econômico para responder solto ao processo. 

Mas não seria vedada a concessão de liberdade provisória se estivessem ausentes os motivos da prisão preventiva. Com base em precedentes do próprio STF, os advogados lembraram que a prisão preventiva decorrente unicamente de previsão legal não é autorizada pelo ordenamento jurídico brasileiro em razão da primazia dos princípios da presunção de inocência, razoabilidade, devido processo legal, além da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão. 

Liberdade provisória

Na última quinta, o Supremo decidiu que o legislador não pode restringir o poder do juiz de analisar a possibilidade de conceder liberdade provisória. Os ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e Luiz Fux ficaram vencidos. Joaquim Barbosa concedia o pedido de Habeas Corpus para determinar a soltura do preso por considerar que a decisão de mantê-lo preso carecia de fundamentação. 

Para o ministro Marco Aurélio, "os representantes do povo brasileiro e os representantes dos estados, deputados federais e senadores, percebendo a realidade prática e o mal maior que é revelado pelo tráfico de entorpecentes, editaram regras mais rigorosas no combate ao tráfico de drogas". De acordo com ele, o legislador agiu dentro dos limites de sua competência. Mas o ministro também concedia o Habeas Corpus 140.339 por excesso de prazo da prisão cautelar, já que o acusado está preso há quase três anos sem condenação definitiva. 

Para a maioria do tribunal, contudo, a norma é inconstitucional. Como ressaltou o decano do STF, ministro Celso de Mello, a gravidade abstrata do delito não basta, por si só, para justificar a prisão cautelar do suposto criminoso. Principalmente, sem que a culpa tenha sido formada. 

O relator do processo, ministro Gilmar Mendes, disse que a inconstitucionalidade da norma reside no fato de que ela estabelece um tipo de regime de prisão preventiva obrigatória. E a liberdade seria a exceção. Na verdade, as garantias constitucionais preveem o contrário. Para o ministro Celso de Mello, o juiz tem o dever de aferir se estão presentes hipóteses que autorizam a liberdade. Lewandowski concordou com Celso e afirmou que o princípio da presunção de inocência e a obrigatoriedade de fundamentação das ordens de prisão pela autoridade competente impedem que a lei proíba, de saída, a análise de liberdade provisória. 

No julgamento, os ministros deixaram claro que não se trata de impedir a decretação da prisão provisória quando necessário, mas de não barrar a possibilidade de o juiz, que é quem está atento aos fatos específicos do processo, analisar se ela é ou não necessária. 

Pena alternativa

Em setembro de 2010, os ministros declararam inconstitucional a regra, contida no mesmo artigo 44, que proibia juízes de fixar penas alternativas para condenados por tráfico de drogas. Na ocasião, o ministro Celso de Mello disse que cabe ao juiz da causa avaliar qual é a pena mais adequada para o condenado. “Afasta-se o óbice para que o magistrado possa decidir”, afirmou. 

A maioria dos ministros entendeu que a proibição fere o princípio da individualização da pena. Para os quatro vencidos, a Constituição permite que o legislador estabeleça balizas dentro das quais o juiz deve atuar na hora de decidir qual será a pena de condenados. 

O relator do processo, ministro Ayres Britto, sustentou que o legislador não pode restringir o poder de o juiz estabelecer a pena que acha mais adequada para os casos que julga. “Ninguém mais do que o juiz da causa pode saber a melhor pena para castigar e ressocializar o apenado”, afirmou na semana passada. De acordo com ele, a lei não pode proibir que a Justiça procure “alternativas aos efeitos traumáticos do cárcere”. 

Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Celso de Mello concordaram com o relator. O ministro Gilmar Mendes apontou o que chama de “falta de cuidado do legislador” na fixação de limites e no respeito à reserva legal. “Não há liberdade para o legislador neste espaço que é de direito fundamental. A Constituição consagrou que o direito à individualização da pena é fundamental e como tal deve ser tratado”. 

Gilmar Mendes ressaltou que o STF não está decidindo que haja uma liberação geral para os condenados por tráfico, mas sim permitindo que o juiz faça a avaliação e possa decidir com liberdade qual será a pena mais adequada. “O tribunal está a impedir que se retire do juiz o poder dessa avaliação”, concluiu, também na semana passada. 

O ministro Joaquim Barbosa divergiu do relator e foi acompanhado pelas ministras Cármen Lúcia e Ellen Gracie (aposentada) e pelo ministro Marco Aurélio. Para Barbosa, a Constituição não outorga ao juiz esse poder amplo, de decidir qual é a pena mais adequada em todos os casos.

Joaquim Barbosa deu exemplos nos quais o legislador restringiu o poder decisão do juiz sobre a pena e que não são considerados inconstitucionais. “O Código Penal traz vedações à substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos em diversos pontos. Por exemplo, quando o crime é cometido com violência ou grave ameaça”, afirmou. O ministro lembrou que no crime de roubo simples é vedada a pena alternativa. 

O ministro Marco Aurélio lembrou que a própria Constituição dá um tratamento diferente ao tráfico de drogas ao estabelecer que é um crime inafiançável. Para Marco, a Constituição se auto-limita. “Não consigo harmonizar o fato de uma pessoa ser presa em flagrante, responder ao processo presa e ter a seguir, depois de condenada, a pena restritiva de liberdade substituída pela restritiva de direitos”, disse. 

O voto do ministro Celso de Mello no sentido de declarar a regra inconstitucional já era esperado. Em outras ocasiões, o decano já havia concedido liminares para permitir que pessoas presas por tráfico de drogas respondam ao processo em liberdade, o que também é vedado pela Lei de Drogas.


Fonte: Conjur

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